Apenas dor, sem angústia
Em "O Mal
obscuro", o escritor italiano Giuseppe Berto relata seu processo psicanalítico, convertendo a "gagueira do sintoma"
em fluidez narrativa
JURANDIR FREIRE COSTA
O Mal Obscuro", de Giuseppe Berto, é um romance centrado na experiência psicanalítica. O livro, escrito em 1964,
continua atual por dois principais motivos: primeiro pela qualidade literária;
segundo por falar de psicanálise e, ainda assim, permanecer
interessante. No que concerne à qualidade literária, remeto o leitor a quem é de
direito, ou seja, ao posfácio de Carlo Emilio Gadda, um dos escritores
que inspiraram Berto. No que concerne ao interesse
psicanalítico, justifico, em seguida, minha opinião.
É difícil, muito difícil, fazer de um processo psicanalítico
matéria de ficção sem que a psicanálise e a ficção percam a densidade
que lhes é própria. O substrato da cura analítica é a repetição, aquilo
que em nós se fecha à mudança e prende a vida à pobreza descarnada do
sintoma. A literatura, ao contrário, é o que se abre ao movimento, à
incessante reconstrução metafórica do sujeito e de seu mundo. Como,
então, traduzir sem trair? Como fazer do pouco, muito? Berto
apoiou-se em Carlo Emilio Gadda ("O Conhecimento da Dor", ed. Rocco) e em
Italo Svevo ("A Consciência de Zeno", ed. Nova Fronteira) para
levar a tarefa a bom termo. Conseguiu. Usou o humor contra a dor,
convertendo a gagueira do sintoma em fluidez e encantamento narrativos.
O núcleo do enredo é simples. O narrador da história, depois
da morte do pai e de doenças orgânicas mal diagnosticadas e mal
tratadas, começou a apresentar crises agudas de ansiedade hipocondríaca, fóbica,
obsessiva e depressiva. Algo assim como o que, hoje, chamaríamos de uma
síndrome de pânico acompanhada de intensos componentes depressivos.
Seguiu-se a corrida infrutífera por diversos tratamentos, até que lhe
foi sugerido o tratamento psicanalítico. Encontrou Nicola Perroti, um
analista freudiano, e, incentivado por ele, escreve "O Mal Obscuro",
que denominou "o relato de minha doença".
Terminado o romance, Berto,
em uma nota incluída no texto,
diz: "Na época, eu não acreditava na psicanálise e temo continuar
não acreditando... Porém o ponto de força psicanálise não é
tanto a doutrina, mas o analista... Tive sorte de encontrar um homem
extraordinariamente bom, inteligente, compreensivo, atento, afetuoso
[que] me
ajudou a sair sem grandes desconfortos das crises medonhas do mal e
conduziu-me gradativamente a olhar dentro de mim sem medo ou
vergonha do
que eu pudesse encontrar ali, porque qualquer coisa que eu visse
seria sempre algo pertencente ao homem".
A descrição do
curso de uma análise não poderia ser mais precisa. Mas não é, como se pode
pensar, um sinal verde para o infantilismo autoindulgente.
O "velhinho",
como Berto apelidou Perroti, não desvelou as origens fantasiosas da culpa
que o aprisionava a figura do pai morto para "absolvê-lo" dos desejos
parricidas. Mostrou-lhe, o tempo todo, que a culpa tinha o tamanho de seu
narcisismo. Isto é, bonzinho "ma non troppo". Compreensão, sim, mas com
implicação. Entender a natureza da falta imaginária que está na raiz da
culpa não isenta o sujeito de responsabilidade ética. Na base do elo culposo
entre pai e filho, assinalou Perroti, estava o mesmo ganho narcísico que
mantinha este último obcecado pela idéia de escrever uma "obra-prima" que
nunca tinha sido "obra" e ainda menos "prima". Berto, ao renunciar à
idealização de si, liberou-se da culpa massacrante e, finalmente, concluiu
seu belo livro sobre "a obscuridade do mal".
Banalidade e
obscuridade
Coube a Hannah
Arendt revelar uma das faces mais desconcertantes do mal, sua banalidade;
coube a Berto desenhar o esboço da outra face, a obscuridade. No vocabulário
freudiano, a banalidade do mal, como mostrou Contardo Calligaris há mais de
dez anos, é a desistência de pensar sobre o que se é e subserviência
impensada ao desejo do outro.
Esta é a matriz
do alheamento em relação a si e da crueldade para com o próximo.
A obscuridade,
segundo Berto, é de outra ordem. Aqui, não se trata apenas de ceder
irrefletidamente à sedução do outro, seja ele pai, político, cientista, guia
espiritual ou qualquer outro Führer. Trata-se também de não encontrar um
destinatário ao qual se possa dirigir a pergunta: é justo ou não desejar o
que o outro não deseja? Berto, ao longo da vida, esforçou-se para escapar da
banalidade, porém nunca se deparou com um interlocutor que bem respondesse a
sua interrogação.
Rendeu-se, então,
à inércia narcísica. Combateu nas guerras imperialistas na África, tornou-se
fascista, foi amante, pai, roteirista de produções cinematográficas de
quinta categoria etc., porque assim rezava a rotina burguesa, porque era
assim que todo mundo deveria ser.
Após a crise
psíquica, saiu da chave da banalidade, mas para entregar-se ao gozo com a
obscuridade do mal. A neurose, diz o autor em outra passagem, nos faz
oscilar continuamente entre "o desespero de jamais se curar" e a "esperança
de sarar milagrosamente de um dia para o outro".
Em outros termos,
o desespero resulta da percepção do mal magnificado pelo narcisismo; a
esperança milagrosa, da impotência para agir correlata ao gozo masoquista
com o sofrimento. Nos dois casos, a verdade sobre o desejo do sujeito é uma
contrafação derivada da onipotência narcísica que bloqueia a vida criativa
na angústia da repetição. É preciso, então, que um outro suporte a projeção
desta oscilação, trazendo de volta a questão silenciada.
Nem desespero nem
esperança A afirmação pode soar como trivial para quem não recorda o
pavoroso episódio vivido por Primo Levi, quando estava no campo de
concentração. Certa vez, Levi, em via de morrer de sede, pôs na boca um
pequeno bloco de gelo que estava colado na janela do barracão onde estava
preso. Um nazista arrancou o bloco de sua boca com uma tapa.
Levi perguntou:
por quê? O nazista respondeu: "aqui não há por quê!". A situação,
obviamente, é extrema. Mostra, entretanto, aquilo em que podemos nos tornar
quando já não podemos perguntar "por quê?". Todas as proporções guardadas,
foi o oposto disto que aconteceu no encontro do "velhinho" com Berto. No
lugar do desespero e da esperança milagrosa, o analista levou o analisando a
voltar a perguntar "por quê?".
Este é o primeiro
e o definitivo passo de uma análise. Com ele inicia-se o trabalho de
restituição da fé no que poderemos ser, pela restituição da confiança no
outro disposto a sustentar o incansável "por quê" do desejo, do sentido da
vida, da vontade de viver. O sintoma é a infidelidade ao desejo de duvidar,
"ao desejo de por quê".
Uma vez aí, não
necessitamos mais de fascismos ou de pânicos para sobreviver. Ao
entendermos, como o fez Berto, que "narrar é doloroso, mas também é doloroso
o silêncio", a vida deixa de ser uma "ruína sem remédio" e o mal sai das
cavernas para vir à luz como "coisas que sempre pertencem ao homem". As
adversidades, os maus momentos, continuarão a existir, porém o que antes
paralisava agora faz andar. Ou, na elegante escrita de Berto: a dor
permanece apenas dor, não se transforma mais em angústia.
Um livro
excepcional, para leigos e analistas. Para analistas, sobretudo, que
resistem e como! -a se tornar, pura e simplesmente, "velhinhos atentos e
compreensivos", em busca de "por quês" perdidos.
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