segunda-feira, 27 de agosto de 2012

"O Mal obscuro"


Apenas dor, sem angústia

Em "O Mal obscuro", o escritor italiano Giuseppe Berto relata seu processo psicanalítico, convertendo a "gagueira do sintoma" em fluidez narrativa

JURANDIR FREIRE COSTA

O Mal Obscuro", de Giuseppe Berto, é um romance centrado na experiência psicanalítica. O livro, escrito em 1964, continua atual por dois principais motivos: primeiro pela qualidade literária; segundo por falar de psicanálise e, ainda assim, permanecer interessante. No que concerne à qualidade literária, remeto o leitor a quem é de direito, ou seja, ao posfácio de Carlo Emilio Gadda, um dos escritores que inspiraram Berto. No que concerne ao interesse psicanalítico, justifico, em seguida, minha opinião.
É difícil, muito difícil, fazer de um processo psicanalítico matéria de ficção sem que a psicanálise e a ficção percam a densidade que lhes é própria. O substrato da cura analítica é a repetição, aquilo que em nós se fecha à mudança e prende a vida à pobreza descarnada do sintoma. A literatura, ao contrário, é o que se abre ao movimento, à incessante reconstrução metafórica do sujeito e de seu mundo. Como, então, traduzir sem trair? Como fazer do pouco, muito? Berto apoiou-se em Carlo Emilio Gadda ("O Conhecimento da Dor", ed. Rocco) e em Italo Svevo ("A Consciência de Zeno", ed. Nova Fronteira) para levar a tarefa a bom termo. Conseguiu. Usou o humor contra a dor, convertendo a gagueira do sintoma em fluidez e encantamento narrativos.
O núcleo do enredo é simples. O narrador da história, depois da morte do pai e de doenças orgânicas mal diagnosticadas e mal tratadas, começou a apresentar crises agudas de ansiedade hipocondríaca, fóbica, obsessiva e depressiva. Algo assim como o que, hoje, chamaríamos de uma síndrome de pânico acompanhada de intensos componentes depressivos. Seguiu-se a corrida infrutífera por diversos tratamentos, até que lhe foi sugerido o tratamento psicanalítico. Encontrou Nicola Perroti, um analista freudiano, e, incentivado por ele, escreve "O Mal Obscuro", que denominou "o relato de minha doença".
Terminado o romance, Berto, em uma nota incluída no texto, diz: "Na época, eu não acreditava na psicanálise e temo continuar não acreditando... Porém o ponto de força psicanálise não é tanto a doutrina, mas o analista... Tive sorte de encontrar um homem extraordinariamente bom, inteligente, compreensivo, atento, afetuoso [que] me ajudou a sair sem grandes desconfortos das crises medonhas do mal e conduziu-me gradativamente a olhar dentro de mim sem medo ou vergonha do que eu pudesse encontrar ali, porque qualquer coisa que eu visse seria sempre algo pertencente ao homem".
A descrição do curso de uma análise não poderia ser mais precisa. Mas não é, como se pode pensar, um sinal verde para o infantilismo autoindulgente.
O "velhinho", como Berto apelidou Perroti, não desvelou as origens fantasiosas da culpa que o aprisionava a figura do pai morto para "absolvê-lo" dos desejos parricidas. Mostrou-lhe, o tempo todo, que a culpa tinha o tamanho de seu narcisismo. Isto é, bonzinho "ma non troppo". Compreensão, sim, mas com implicação. Entender a natureza da falta imaginária que está na raiz da culpa não isenta o sujeito de responsabilidade ética. Na base do elo culposo entre pai e filho, assinalou Perroti, estava o mesmo ganho narcísico que mantinha este último obcecado pela idéia de escrever uma "obra-prima" que nunca tinha sido "obra" e ainda menos "prima". Berto, ao renunciar à idealização de si, liberou-se da culpa massacrante e, finalmente, concluiu seu belo livro sobre "a obscuridade do mal".

Banalidade e obscuridade

Coube a Hannah Arendt revelar uma das faces mais desconcertantes do mal, sua banalidade; coube a Berto desenhar o esboço da outra face, a obscuridade. No vocabulário freudiano, a banalidade do mal, como mostrou Contardo Calligaris há mais de dez anos, é a desistência de pensar sobre o que se é e subserviência impensada ao desejo do outro.
Esta é a matriz do alheamento em relação a si e da crueldade para com o próximo.
A obscuridade, segundo Berto, é de outra ordem. Aqui, não se trata apenas de ceder irrefletidamente à sedução do outro, seja ele pai, político, cientista, guia espiritual ou qualquer outro Führer. Trata-se também de não encontrar um destinatário ao qual se possa dirigir a pergunta: é justo ou não desejar o que o outro não deseja? Berto, ao longo da vida, esforçou-se para escapar da banalidade, porém nunca se deparou com um interlocutor que bem respondesse a sua interrogação.
Rendeu-se, então, à inércia narcísica. Combateu nas guerras imperialistas na África, tornou-se fascista, foi amante, pai, roteirista de produções cinematográficas de quinta categoria etc., porque assim rezava a rotina burguesa, porque era assim que todo mundo deveria ser.
Após a crise psíquica, saiu da chave da banalidade, mas para entregar-se ao gozo com a obscuridade do mal. A neurose, diz o autor em outra passagem, nos faz oscilar continuamente entre "o desespero de jamais se curar" e a "esperança de sarar milagrosamente de um dia para o outro".
Em outros termos, o desespero resulta da percepção do mal magnificado pelo narcisismo; a esperança milagrosa, da impotência para agir correlata ao gozo masoquista com o sofrimento. Nos dois casos, a verdade sobre o desejo do sujeito é uma contrafação derivada da onipotência narcísica que bloqueia a vida criativa na angústia da repetição. É preciso, então, que um outro suporte a projeção desta oscilação, trazendo de volta a questão silenciada.
Nem desespero nem esperança A afirmação pode soar como trivial para quem não recorda o pavoroso episódio vivido por Primo Levi, quando estava no campo de concentração. Certa vez, Levi, em via de morrer de sede, pôs na boca um pequeno bloco de gelo que estava colado na janela do barracão onde estava preso. Um nazista arrancou o bloco de sua boca com uma tapa.
Levi perguntou: por quê? O nazista respondeu: "aqui não há por quê!". A situação, obviamente, é extrema. Mostra, entretanto, aquilo em que podemos nos tornar quando já não podemos perguntar "por quê?". Todas as proporções guardadas, foi o oposto disto que aconteceu no encontro do "velhinho" com Berto. No lugar do desespero e da esperança milagrosa, o analista levou o analisando a voltar a perguntar "por quê?".
Este é o primeiro e o definitivo passo de uma análise. Com ele inicia-se o trabalho de restituição da fé no que poderemos ser, pela restituição da confiança no outro disposto a sustentar o incansável "por quê" do desejo, do sentido da vida, da vontade de viver. O sintoma é a infidelidade ao desejo de duvidar, "ao desejo de por quê".
Uma vez aí, não necessitamos mais de fascismos ou de pânicos para sobreviver. Ao entendermos, como o fez Berto, que "narrar é doloroso, mas também é doloroso o silêncio", a vida deixa de ser uma "ruína sem remédio" e o mal sai das cavernas para vir à luz como "coisas que sempre pertencem ao homem". As adversidades, os maus momentos, continuarão a existir, porém o que antes paralisava agora faz andar. Ou, na elegante escrita de Berto: a dor permanece apenas dor, não se transforma mais em angústia.
Um livro excepcional, para leigos e analistas. Para analistas, sobretudo, que resistem e como! -a se tornar, pura e simplesmente, "velhinhos atentos e compreensivos", em busca de "por quês" perdidos.

[1] Jornal Folha de São Paulo, MAIS!, 19 de Junho de 2005. 

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