sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

http://www.teiadethea.org/?q=node/96
Sobre o caso Isabel dos Santos.
A imprensa tem martelado este tema focando a corrupção da filha do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos que, pelo visto, pretendia se eternizar neste cargo. Diante disso, Sua filha teria se valido da posição privilegiada de filha para se associar a empresas estatais e obter privilégios que não estavam franqueados aos demais componentes da humanidade que, como ela, tbem eram filhos de Deus.
É preciso em casos tais analisar o sistema e as falhas do sistema, e, neste particular, insta destacar que não sou angolano e ñ tenho conhecimento amplo sobre o ordenamento jurídico de Angola. Mas tomando como paradigma as normas constitucionais prevalecentes na maioria dos paises civilizados é de supor que o sistema angolano tbem as acompanhe.
Em primeiro lugar no sistema que vivemos está à frente o modelo capitalista e aqui surge o primeiro entrave: Angola é capitalista, socialista ou comunista? Aquele emblema do facão sobre a orla dentada é significativo face á semelhança com a foice e o martelo dos comunistas ortodoxos. Mas o MPLA era comunista e ele venceu a parada. Portanto, prevalece o comunismo. Estes regimes são todos fechados e de cunho autoritário, ou seja: manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Vencida esta parte, vamos por outra vertente. Nos cursos de Administração de Empresas, desde a Harvard, que é a meca de estudantes e candidatos a tal, é endeusada a competição e professado um verdadeiro culto á esperteza daquele que cava oportunidades no meio empresarial. A linha que separa o legal e o ilegal neste terreno é extremamente tênue. Então há que se fazer a pergunta: Isabel agiu às escondidas, na calada da noite, ou na luz do dia e a frente de todos? Pelo que eu vejo todos sabiam da sua atuação a frente de empresas do porte da Sonangol dentre outras. Então porque ninguém agiu? Onde estavam os órgãos do Estado Angolano que não tomou as medidas cabiveis. Diante disso, é de supor que ela agiu conforme o ordenamento jurídico. Se as parcerias ou acordos mantido com o governo padece de ilegalidade, porque só agora vieram á tona, se isso era de conhecimento de todos?
Diante disso, acho que o caso deve ser analisado cum grano salis, como dizem os juristas. Porque se a legislação é capenga e contém brechas, inclusive o nepotismo, não é culpa daquele que dela se beneficiou; a culpa é daqueles que legislaram e, pior ainda, se viram seus efeitos e não os corrigiu com ela concordaram. Prevalece então o adágio juridico: suporta a lei que fizestes!

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Marxismo e Dialética

https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2016/07/04/marxismo-e-subjetividade-jean-paul-sartre/



Jean-Paul Sartre.*
O problema que nos interessa é o da subjetividade no âmbito da filosofia marxista, a fim de ver, a partir dos princípios e das verdades que constituem o marxismo, se a subjetividade existe, se apresenta interesse ou se é simplesmente um conjunto de fatos que podem ficar fora de um grande estudo dialético do desenvolvimento humano. Gostaria de mostrar como, a partir de Lukács, por exemplo, a má interpretação de certos textos marxistas ambíguos pode permitir o que chamarei de dialética idealista que deixa o sujeito de lado, e como essa posição é muito perigosa até para o desenvolvimento do conhecimento marxista.Fica acertado que não vamos, de início, falar do sujeito e do objeto, e sim da objetividade, ou objetivação, e da subjetividade, ou subjetivação. O sujeito é outro problema, problema mais complexo; mas eu queria que guardássemos esta ideia: quando se fala de subjetividade, fala-se de certo tipo, como veremos, de ação interna, de um sistema, de um sistema em interioridade, e não de uma relação imediata com o sujeito.
Se a filosofia marxista for considerada superficialmente, poderá receber o nome de pan-objetivismo, isto é, que o dialético marxista só se interessa, aparentemente, primeiro pelo que é realidade objetiva, e, de fato, certos textos muito profundos de Marx podem ser mal interpretados, como, por exemplo, o bem conhecido A sagrada família: “Pouco importa o que este ou aquele proletário, ou até todo o proletariado, imagine momentaneamente como finalidade. Só importa aquilo que ele é e o que será historicamente obrigado a fazer em conformidade com esse ser.”[1] Aqui, pareceria que o subjetivo aparece do lado da representação, a qual, em si, não tem nenhum interesse, pois a realidade profunda é o processo que faz do proletariado o agente da destruição da burguesia e o obriga a ser esse agente realmente: realmente, quer dizer, de modo objetivo e nos fatos; e outros textos podem ir ainda mais longe fazendo crer que o subjetivo nem tem a importância de uma representação que pertenceria ao sujeito ou a um grupo de indivíduos, visto que ele desaparece completamente como tal. Lembremos o texto de O Capital[2] que indica que a forma final das relações econômicas tais como se mostram em sua superfície, na existência real e, por conseguinte, também na representação pela qual os portadores e os agentes de suas relações procuram ter delas uma ideia clara, é bem diferente, e de fato contrária, de sua forma interna, essencial porém oculta, e do conceito que lhes corresponde naturalmente no plano da realidade econômica tal como ele a descreve: nenhuma dificuldade, todo mundo está de acordo. Mas a ambiguidade da formulação pode ter enganado alguns, como Lukács, porque a subjetividade parece sumir completamente: nesse texto as aparências são tão objetivas e reais quanto o fundo, produzidas como são pela situação econômica, pelo processo econômico.
Tomemos, por exemplo, a reificação que não é um elemento pertencente ao fundo, mas produzido pelo fundo, pelo processo do capital, ou ainda a fetichização da mercadoria que faz com que a mercadoria apareça como tendo certas propriedades que ela não tem. Essa fetichização da economia aparece como resultado direto do processo do capital e, por conseguinte, quando vemos uma mercadoria fetichizada, quando nós mesmos, embora alertados pela teoria marxista,tomamos essa mercadoria que vamos comprar como fetichizada, quando a consideramos um fetiche, limitamo-nos a fazer o que a realidade exige que façamos, pois, em certo nível, ela é objetiva e realmente fetichizada. Nesse momento, como se percebe, a realidade subjetiva parece sumir completamente, pois o portador das relações econômicas as realiza como deve realizá-las, no nível em que ele se encontra, e a ideia que ele tem delas limita-se a refleti-las no mesmo nível em que se encontra a práxis; ou seja, que o negociante e o comprador nesse nível imediato tomarão essa mercadoria como fetichizada, mesmo que o economista ou o marxista, em outro plano, percebam que essa fetichização é, na realidade, uma transformação decorrente do processo do capital. Por isso, alguém como Lukács pode propor uma teoria da consciência de classe inteiramente objetiva, segundo uma dialética objetiva e, se ele parte da subjetividade, será apenas para remetê-la ao sujeito individual, concebido como fonte de erros ou apenas de realização inadequada. Com Lukács, será considerado, sobretudo, que a consciência de classe é mais ou menos desenvolvida, mais ou menos clara, mais ou menos obscura, mais ou menos contraditória, mais ou menos eficaz, apenas pelo fato de a classe considerada pertencer, direta ou indiretamente, ao processo essencial de produção. Por exemplo, no pequeno-burguês, a consciência de classe será objetivamente vaga,obscura e nunca poderá, por razões que Lukács explica, chegar a uma verdadeira consciência de si, ao passo que o proletariado, profundamente inserido no processo de produção, pode ser levado, pela realidade que é o seu trabalho, a uma total tomada de consciência de classe.
Essa concepção ordena o objetivismo a ponto de fazer desaparecer toda subjetividade e, assim, até nos fazer cair em um idealismo, idealismo sem dúvida dialético, idealismo no qual se partirá da condição material, mas, mesmo assim, idealismo. Ora, não é verdade que Marx, ou o marxismo, se prestem a esse papel. Há textos cuja ambiguidade decorre de sua profundidade, mas que não são textos a serem interpretados como se o pan-objetivismo fosse a finalidade precisa do marxismo. É bastante sensível em textos como a Introdução à crítica da economia política, em que Marx escreve: “Assim como em toda ciência histórica ou social em geral, nunca se deve esquecer, a propósito do avanço das categorias econômicas, que o sujeito — no caso, a sociedade burguesa moderna — é conhecido, tanto na realidade quanto na mente, que as categorias exprimem, portanto, formas de existência, condições de existência determinadas, quase sempre simples aspectos particulares dessa determinada sociedade, desse sujeito, e, por conseguinte, essa sociedade só começa a existir, também do ponto de vista científico, a partir do momento em que ela é tratada como tal.[3] É claro que “existência” não quer dizer aqui existencialismo ou existência no sentido existencialista. Não se trata de extrair dos textos um sentido que eles não têm, mas isso nos remete ao homem total. Porém, qual é esse homem total? Os senhores sabem que nos textos do jovem Marx, assunto que ele retoma depois, o homem total se define por uma dialética de três termos: necessidade, trabalho, prazer. Logo, se quisermos compreender, segundo Marx, o conjunto da dialética da produção, é indispensável primeiro voltar ao fundo, e o fundo é o homem que tem necessidades, que procura satisfazê-las, isto é, produzir e reproduzir sua vida pelo trabalho, e que consegue, segundo o processo econômico disso resultante, chegar ao prazer mais ou menos imperfeito, mais ou menos atrofiado, ou mais ou menos total.
Ora, se considerarmos esses três elementos, constatamos que todos eles definem uma rigorosa ligação do homem real com uma sociedade real e com o ser material circundante, com a realidade que não é ele. Trata-se, portanto, de uma ligação sintética do homem com o mundo material e, nessa e por essa ligação, de uma relação mediada dos homens entre si. Ou seja, mesmo nesse texto, a realidade do homem aparece primeiro como a ligação a uma transcendência, a um além, ao que está fora dele e diante dele. Tem-se necessidade de algo que não está em si, o organismo precisa de oxigênio; o que já constitui uma relação com o meio, com a transcendência. Um homem trabalha para conseguir instrumentos que lhe permitam apaziguar a fome e reproduz sua existência sob uma forma qualquer que depende do desenvolvimento econômico. Ainda nisso, a necessidade é um elemento que se encontra alhures, e o prazer, uma incorporação por certos fatos internos daquilo de que ele necessita, isto é, exatamente ainda de um ser exterior. Logo, a primeira ligação que Marx destaca com esses três termos é uma ligação com o ser de fora, isto é, uma ligação que chamamos de transcendência. Essas três características produzem, pois, uma espécie de “explosão de si mesmo para…”, ao mesmo tempo que um retorno para si, uma retomada para si. Como tais, podem ser descritas objetivamente e, em determinado plano, ser objeto de um saber. Mas, ao mesmo tempo que são objeto de um saber, remetem regressivamente a alguma coisa, como um si que se nega e se supera conservando-se; ou ainda, retomando os termos de Marx, cabe dizer: já que o trabalho é objetivação pela reprodução da vida, o que se objetiva pelo trabalho? O que é ameaçado pela necessidade? O que suprime a necessidade pelo prazer? A resposta evidente é o organismo biológico prático ou, se preferirmos, na medida em que esse termo nos interessa por sua subjetividade, a unidade psicossomática. Por conseguinte, percebemos aqui uma unidade que escapa ao conhecimento direto por sua interioridade. Logo voltaremos a esse ponto. Por enquanto, quero dizer apenas isto: suponhamos que um trabalho é executado por meio de um instrumento; ele exige a unidade de uma superação prática da situação em direção a um fim; isso supõe conhecimentos: o conhecimento da finalidade e dos meios, da natureza dos materiais, das exigências inertes do instrumento e, em uma sociedade capitalista, até o conhecimento da fábrica onde o homem trabalha, as normas, etc. Logo, temos aí todo um saber técnico; todos esses conhecimentos são objeto de um saber orgânico e, ao mesmo tempo, de um saber prático, pois podem ser adquiridos em certos casos por meio da aprendizagem; mas em nenhum caso as posturas que devemos adotar para segurar o instrumento, para utilizar os materiais exigem o conhecimento e menos ainda a denominação dos músculos, dos ossos e das ligações nervosas que permitem manter esta ou aquela posição. Em outros termos, há uma objetividade sustentada por algo que escapa ao saber e que, não só não é conhecida, mas cujo conhecimento seria até, em certos casos, prejudicial à ação. Como no exemplo conhecido: se, ao descer uma escada, você toma consciência do que está fazendo e se a consciência aparece em certo momento para determinar o que você faz, para agir de certo modo sobre essa ação, então você tropeça, porque a ação não tem a característica que deveria ter.
Constatamos assim que, até no caso em que a divisão do trabalho social se estende às máquinas e, por conseguinte, em que máquinas semiautomáticas impõem ao operário tarefas parcelares, o mais simples movimento que seja exigido dele é um movimento que não engendra o conhecimento do corpo. O movimento a executar pode ser mostrado, mas a realidade orgânica do deslocamento, da transformação da postura e da mudança do todo em função da parte não pertence diretamente ao conhecimento. Por quê? Porque, em suma, estamos em presença de um sistema no qual, por motivos que vamos examinar, o não saber entra a título de parte constituinte, e cujas partes já não se desenvolvem, não se definem em transcendência, mas sim em interioridade. Há pouco falaram de interioridade. Eu gostaria que estabelecêssemos uma definição clara do que se entende por sistema de interioridade para melhor compreender o que estamos falando. Um sistema material é definido como tendo um interior ou, se preferirem, como delimitando um campo no universo real, quando a relação de suas partes entre elas passa pela relação de cada uma com o todo. Reciprocamente, o todo é o conjunto das partes na medida em que esse conjunto interfere como tal nas relações que as partes mantêm umas com as outras. O reconhecimento de nosso estatuto orgânico como sistema de interioridade não deve, porém, fazer-nos esquecer que somos, ao mesmo tempo, definidos por um estatuto inorgânico. É possível considerarmo-nos como um conjunto de células, mas é justo que nos tratem como um sistema inorgânico: quando se diz, por exemplo, que um organismo humano contém de 80% a 90% de água, nesse momento consideramo-nos no plano inorgânico, ou então, na medida em que somos objeto de forças mecânicas, nós mesmos somos inorgânicos e estamos situados no mundo inorgânico. Por conseguinte, é possível dizer que o orgânico não é um conjunto de objetos específicos que se vêm
acrescentar, na natureza, ao inorgânico, mas um estatuto particular de certos conjuntos inorgânicos; estatuto definido pela interiorização do exterior. É dizer que o organismo vive sob a forma de uma relação de interioridade, o que pode igualmente ser concebido como um conjunto físico-químico. Tudo acontece como se o conjunto físico-químico não fosse suficientemente determinado e como se, em certos domínios, certos setores, esse conjunto em exterioridade pudesse também serdefinido por uma lei em interioridade.
É então possível distinguir, pelo menos de saída — depois voltaremos a isso —, dois tipos de exterioridade: a exterioridade do de dentro, ou se preferirem do de aquém, de antes, isto é, a exterioridade cujo estatuto é coroado pelo estatuto orgânico; portanto, que fica abaixo do nosso estatuto orgânico, ao qual a morte pode nos remeter, e a exterioridade de além, que corresponde ao que esse organismo, para manter sua característica de organismo, encontra em face de si como objeto de trabalho, como meio da necessidade e da satisfação. Temos, portanto, e convém não perder de vista, uma dialética com três termos: o que obriga a descrever a interiorização do exterior pelo organismo a fim de compreender sua capacidade de reexteriorizar no ser transcendente, ocasião de um ato de trabalho ou de uma determinação da necessidade. Há, por isso, um só momento que se chama interioridade, o qual é uma espécie de mediação, mediação entre dois momentos do ser transcendente. Mas não convém pensar que esses dois momentos são necessariamente distintos em si, isto é, distintos não por razões de temporalidade ou de distribuição de setor. No fundo, é o mesmo ser, o mesmo ser em exterioridade, que procede a uma mediação com ele mesmo, que é a interioridade. Como essa mediação define o lugar em que há a unidade de dois tipos de exterioridade, ela é necessariamente imediata para si, no sentido em que não contém seu próprio saber. Por isso, e veremos por quê, é no nível dessa mediação, que não é mediada, que encontramos a subjetividade pura. E, a partir daí, levando em conta algumas descrições marxistas, reexaminando-as com mais atenção, é que se trata de compreender o estatuto dessa mediação. Terá ela um papel no conjunto do desenvolvimento humano? Existe ela realmente como momento indispensável de uma dialética, e de uma dialética coroada por um conhecimento objetivo? Ou será apenas um epifenômeno?
Como essa temática já existe no interior do marxismo, não se trata para nós de introduzirmos atualmente, de fora, uma noção como a de subjetividade que não se encontrasse no marxismo; trata-se, ao contrário, de explicitar e reencontrar uma noção que já foi dada com os conceitos de necessidade, trabalho e prazer, no próprio marxismo, e que foi ignorada por certos objetivistas idealistas como Lukács. Primeiro, vamos tentar compreender por que essa mediação, imediata por si, implica o não saber como sua característica particular. Por que será necessário que o homem, em sua prática, em sua práxis, que é conhecimento e ao mesmo tempo ação, que é ação que gera suas próprias luzes, por que será necessário que ele seja ao mesmo tempo, no plano que chamamos de subjetividade, um não conhecimento de si? E também vamos perguntar como, em tais condições, já que ele é não conhecimento de si, como será possível atingir a subjetividade? Se a subjetividade é efetivamente o não objeto,[4] se ela escapa como tal ao conhecimento, como poderemos pretender afirmar verdades a seu respeito? Tudo isso pode ser facilmente esclarecido desde que se parta de situações muito simples. Tomemos, por exemplo, o caso do antissemita. O antissemita, o homem que detesta judeus, é um inimigo dos judeus, mas quase sempre o antissemita não se declara como tal. Quando há um grande movimento social como o que foi feito pelos nazistas em 1933, ele pode então ter coragem para afirmar “Odeio os judeus”, mas normalmente não é isso o que ele faz. Costuma declarar: “Eu, antissemita? Não, não sou antissemita, acho apenas que os judeus têm este ou aquele defeito e que, por isso, é melhor não permitir que participem da política, convém limitar suas possibilidades de contatos comerciais com os não judeus porque eles têm uma tendência para a corrupção etc.” Em suma, esse homem apresenta-nos características do judeu que ele pretende conhecer, mas faz isso como se ele próprio não se visse como antissemita. É um primeiro momento. E todos conhecem pessoas que dizem a respeito dos judeus coisas muito pesadas e desagradáveis, declarando que é a objetividade e não a subjetividade que leva a
isso. Há, porém, um momento em que algo vai acontecer, não é? Foi assim que Morange, um amigo meu de Paris, comunista, há pouco tempo me contou que, bem antes da guerra, ele frequentava uma célula do Partido onde havia um operário que contradizia sistematicamente tudo o que ele dizia, e isso o irritava muito. Não se tratava de uma discussão, mas poderia ter sido. Também não era uma incompatibilidade entre um trabalhador manual e um intelectual, como ocorre às vezes, pois havia na mesma célula outros intelectuais com os quais o operário se dava muito bem. Era de fato, dizia o operário, uma “história de pele”: “Ele me é antipático, e pronto!” Depois, um belo dia, esse operário foi falar com ele e disse: “Olhe, entendi agora. No fundo, não gostei de você esse tempo todo porque você é judeu, e só agora percebo que foi porque ainda não me livrei de resquícios da ideologia burguesa, eu não tinha entendido direito, e você, ao contrário, dá um exemplo que me ajuda; compreendi que detesto o judeu que vejo em você porque sou antissemita.” Percebam a brusca mudança. Naquele momento, uma espécie de contradição entre uma atitude geral e uma atitude particular — contradição que, infelizmente, não vale, por exemplo, para o pequeno-burguês a quem nada conseguirá deter quando afirma o seu antissemitismo —, contradição entre o humanismo comunista geral e uma atitude particular leva à tomada de consciência reflexiva. Mas é possível notar que, naquele momento, o antissemitismo como tal está em vias de supressão. Há passagem para o objeto,[5] é verdade, mas, no momento preciso em que o operário reconhece o seu antissemitismo, está quase se livrando dele. Talvez isso lhe custe muito, talvez ele tenha uma recaída, talvez se julgue liberado e afinal ainda repita o mesmo comportamento. Mas o fundo da questão é que ele está bem perto de se livrar do preconceito porque o antissemitismo já não é a construção subjetiva de um objeto, relação do dentro-fora com um dentro que se ignora, o antissemitismo passa de repente a título de objeto diante dos olhos, diante da reflexão de quem o pratica, e, então, o sujeito fica livre para decidir-se em função disso. Trata-se de
uma relação diferente. Ora, essa distinção da relação entre o antissemita como subjetividade, como sujeito percebendo um objeto que é o judeu, e o antissemita como reflexão percebendo a si mesmo como objeto antissemita, mostra que o conhecimento do subjetivo tem de fato algo destruidor para o próprio subjetivo. Alguém poderia perguntar: afinal, o que aconteceu? Esse homem ignorava que era antissemita, mas nós ignoramos que existe uma jazida de petróleo em determinada região ou ignoramos que existe tal estrela ainda não identificada. Assim como um dia a jazida de petróleo será descoberta ou a estrela identificada, um homem pode descobrir que é antissemita. Há nisso um elemento oculto, uma espécie de “jazida” da qual se toma conhecimento — e, quando dela se tiver conhecimento, será, no caso da jazida de petróleo, para explorá-la, aliás, será pela busca de um campo petrolífero a explorar e, no caso do antissemitismo, tomar conhecimento é tomar conhecimento de uma “jazida” que é um resíduo da ideologia burguesa a ser liquidado. Mas não é nada disso. Porque, no caso da estrela descoberta, tudo ocorre como se o vínculo de conhecimento estabelecido entre ela e o astrônomo não a modificasse em nada. Se supuséssemos que essa relação devia modificá-la, seríamos, de um ou outro modo, idealistas; se pensássemos que, para um poço de petróleo, para uma jazida de petróleo ou para uma estrela, ser conhecido acarretaria uma modificação desses seres, cairíamos no idealismo, isto é, seria como pensar que o conhecimento tem por si uma ação sobre o ser conhecido. De fato, a descoberta pelo conhecimento instaura um vínculo de exterioridade com o objeto conhecido. Decerto, como veremos, há uma parte de interioridade no conhecimento, mas ele tende para a adequação da ideia ao seu objeto, o que significa que, quanto mais os conhecimentos se desenvolvem, mais afinal se atenuam as diferenças entre o objeto conhecido e o objeto cognoscente. A rigor, seria dizer que o conhecimento perfeito é o objeto funcionando com o homem dentro dele fazendo-o funcionar. O conhecimento perfeito do poço de petróleo, da jazida de petróleo, é, afinal, o poço de petróleo, a jazida de petróleo; logo, não há modificação. Em compensação, se considerarmos a ação que o conhecimento exerce sobre o operário que era inocentemente antissemita, vemos que esse conhecimento transforma radicalmente o objeto conhecido, no sentido em que ele fica obrigado a não mais se aceitar como operário socialista, como comunista, ou a não mais se aceitar como antissemita. Aconteceu algo que o transformou completamente. Ele construiu dois sistemas no sentido em que totalizou em exterioridade um camarada israelita ao dizer que ele é um judeu, e acaba de se totalizar ao dizer: “Sou um antissemita.” A palavra pronunciada supera então muitíssimo o trabalho que ele efetuou sobre si, reclassifica-o, coloca-o na objetividade dentro de um grupo, introduz um sistema axiológico de valores, o que lhe promete um futuro e lhe impõe um compromisso: “se sou antissemita” isso significa “detesto todos os judeus”; quer dizer que na próxima semana, quando eu encontrar um, também vou detestá-lo. Em termos de valor, isso induz que já não sou o homem que compartilha os valores dos meus camaradas; ao contrário, em nome dos valores deles, eu estou condenado, e preciso portanto escolher entre condená-los ou condenar a mim mesmo etc. Enfim, acontece que, nesse momento, o próprio objeto é radicalmente diferente como objetivo; torna-se compromisso, conduta objetiva, objeto de juízo de valor, relação com toda a comunidade, hipótese para o futuro; já não temos nada a ver com aquele momento, que era o da subjetividade, no qual o único objeto era aquele indivíduo que havíamos considerado judeu. Isso significa que ele não era antissemita quando agia assim?
No sentido em que consideramos que ele retinha em si um resíduo da sociedade burguesa, da ideologia burguesa que não conseguira eliminar, sim, era antissemita. Mas, no sentido em que teria havido nele uma “jazida” que o tornara antissemita, não, ele não era — “ele não era” no sentido em que havia simplesmente uma tentativa subjetiva de orientar-se no mundo que não compreendia, não incluía seu próprio conhecimento, sua própria distância a si e seu próprio juramento (seu próprio compromisso). Vemos assim que o aparecimento da subjetividade-objeto provoca na pessoa a sua transformação.
Há, aliás, dois exemplos célebres em dois romances de Stendhal. O primeiro em A cartuxa de Parma. O conde Mosca, apaixonado por Sanseverina, observa a partir dela com o seu belo sobrinho Fabrice para passar 15 dias à beira do lago de Como. O par dá mostras de certa ternura ambígua e, ao vê-los assim, o conde prediz que “se a palavra amor for pronunciada entre eles, estou perdido”. Em outros termos, se aquele sentimento, que não é conhecido, que ainda não é para ser conhecido, que ainda não foi nomeado, for chamado “amor”, estou de todo perdido porque tal denominação induzirá fatalmente a certas condutas e promessas; há um desenvolvimento criado pela sociedade que fará que, de certo modo, eles se sintam obrigados a se amar, como se costuma dizer. Por outro lado, por que Madame de Rénal, que execra o amor fora do matrimônio e o adultério, se entrega a Julien Sorel? Porque ela não compreende o que é o amor: ela não pode dar o nome de “amor” ao que se passa dentro dela, porque o amor lhe foi definido por jesuítas que só o conheciam pelos livros, por intermédio da casuística. Além do mais, ela viu homens, amigos do marido que, sem serem belos nem jovens, tentavam induzi-la ao adultério — o que lhe causava horror. Ela tem, portanto, um conceito de amor, ligado à palavra “amor”, que faz com que nunca os sentimentos que ela possa ter por aquele jovem preceptor de seus filhos sejam considerados amor. Para ela, é uma coisa bem diferente, não é nada, vive-se simplesmente. E depois, um belo dia, ela dará o nome de amor porque começará a fazer os gestos do amor. Mas se alguém lhe tivesse dito “Isso é amor” ela teria acabado com aquela relação. Ninguém lhe disse nada. Eis a ilustração do fato de o conhecimento subjetivo transformar constantemente o objeto. Madame de Rénal fez os gestos do amor antes de ter nomeado o amor, e os outros foram salvos ou privados de uma ligação, como queiram, porque a palavra amor nunca foi pronunciada. Vê-se assim a importância que esse momento tem para a subjetividade, como a passagem ao plano objetivo a deforma — ao passo que, se nomeamos uma estrela, isso não a altera em nada — e, por conseguinte, como o que importa é mesmo o não saber, ou seja, o
imediato no interior da mediação.
Por isso devemos fazer uma segunda pergunta que ajudará a compreender a importância funcional do não saber. Se é verdade que a unidade psicossomática efetua uma interiorização subjetiva do ser que lhe é exterior, sobre o qual se opera uma negação prática, que faz com que ela trabalhe o ser exterior colocado diante dela, e se, além disso, temos perpetuamente uma transformação dessa subjetividade desde que a conhecemos, como podemos esperar enunciar algumas verdades sobre ela? Cada vez que tentarmos, estaremos deformando-a. Como será então possível falar da subjetividade sem fazer dela um objeto? Se a subjetividade for considerada onde ela ocorre, isto é, sob forma de interiorização do exterior, de transformação de um sistema de exteriorização em um sistema de interiorização, ela é deformada, torna-se para mim um objeto exterior, eu a mantenho a distância. Mas o ponto em que eu melhor reconheço a subjetividade é nos resultados do trabalho e da práxis, em resposta a uma situação. Se posso descobrir a subjetividade será por uma diferença existente entre o que a situação costuma exigir e a resposta que lhe dou. Não se pense que essa diferenciação corresponde necessariamente a uma resposta menor, ela também pode ser algo mais rico que se vai desenvolver. De qualquer forma, se considerarmos a situação como um teste, seja ela qual for, ela exige algo da pessoa. A resposta nunca será completamente adequada à demanda objetiva; irá além da demanda ou não se porá exatamente onde é preciso, ficará ao lado ou aquém. Logo, é na própria resposta, como objeto, que podemos perceber o que é em si a subjetividade. A subjetividade está fora, como característica de uma resposta, e, na medida em que é um objeto que é constituído, como característica do objeto. Para desenvolver um pouco mais essa ideia, veremos três casos, dos quais o terceiro é o mais interessante. Vejamos primeiro um caso médico, o mais próximo do organismo, a resposta de quem sofre de hemiopia (não sei se é usado o mesmo termo em italiano: é o indivíduo que tem metade da retina cega por uma lesão da calcarina, isto é, da terminação dos nervos ópticos no cérebro.[6] Esse caso será o primeiro a examinar porque remete a uma unidade psicossomática e também é o mais próximo possível de uma simples ligação orgânica; depois veremos o caso muito particular de uma ação pessoal em um campo social reduzido, para chegarmos afinal a um caso que implica a intersubjetividade, para poder analisar o papel exato da subjetividade na dialética total. Vejamos o caso da hemiopia. Trata-se de uma lesão da calcarina que afeta o nervo óptico no ponto em que ele chega aos lobos cerebrais; lesão que provoca, em certos casos não definidos com precisão, uma disfunção: a metade do campo visual desaparece em cada olho. A pessoa enxerga só com metade da retina. Como o olho é uma organização, a retina dispõe suas reações a partir de um ponto central, no meio do que se chama mácula, ou mancha amarela, região na qual as imagens retinianas se formam com mais nitidez. Ora, se estivéssemos diante de um sistema estritamente inorgânico, todo exterior, essa carência teria como resultado uma visão da realidade pela metade, ou seja, a pessoa só veria a metade dos objetos, só apreenderia metade do campo visual. Imaginemos que pudéssemos, sabendo o que vai acontecer, realizar, a título de experiência de laboratório e provisoriamente, a mesma lesão pela ingestão de uma substância física. Que faríamos? Conhecendo essa lesão, nós a manteríamos a distância, sabendo que não veríamos, por exemplo, a metade direita do campo visual. Quando quiséssemos olhar em frente, seríamos obrigados a virar a cabeça e os olhos, reconstituindo assim um novo campo totalizado com a ajuda de uma verdadeira práxis que, de certo modo, afastaria a deficiência. Esse novo campo visual total, nós o constituiríamos praticamente — seria uma verdadeira práxis —, mantendo a deficiência a distância, conhecendo-a para negá-la. E se nos perguntassem “Esse senhor está diante de nós?”, poderíamos responder: “Sim, está diante de mim, mas eu viro a cabeça para vê-lo melhor porque tenho metade de um olho que está isolada.” Se, abandonando essa hipótese, estivermos com alguém que sofre efetivamente de hemiopia, alguém para quem a lesão resulta de um processo de ordem fisiológica, devemos descrever sua reação a essa deficiência que o priva de metade do campo visual. Adotará ele o primeiro sistema que consiste em ver apenas metade do mundo, ou o segundo, conhecendo sua lesão e dando um jeito para usar como instrumento a metade do olho que lhe resta? Nem uma coisa nem outra. Por um lado, ele ignora sua deficiência; por outro, ele mantém a unidade de seu campo visual prático. As duas coisas vão juntas: ele não diz que lhe falta metade da visão, mas costuma dizer que não enxerga muito bem, que fica um pouco cansado. É isso o que ele diz. Mas, por outro lado, o campo óptico está íntegro e é claro que ele vira os olhos para ver o que está à sua frente. O sistema óptico é íntegro porque se reconstituiu da seguinte maneira: todos os pontos da retina se modificam por não poderem organizar a visão em torno do ponto central com uma degradação lateral da visibilidade; um sistema é constituído sobre a metade de olho que lhe resta, mas esse sistema é total; o centro da reorganização foi deslocado para o lado e, ao mesmo tempo, zonas de degradação foram criadas; cada ponto da retina adotou uma nova função. De tal modo que se chega a um resultado curioso: lá, onde antes a visão era mais nítida, na borda da mácula, ela ficou mais prejudicada. A retina, bem como a acomodação, o movimento, o próprio campo visual se transformaram, de tal modo que, certo ponto lateral, onde habitualmente a visão é imprecisa, impõe-se por sua vez como ponto central. E, como o portador de hemiopia ignora isso, ele diz simplesmente que enxerga menos. Se lhe perguntarem qual objeto está diante dele, ele responde que é o objeto que está na frente desse novo ponto central, já que é sobre esse ponto que se apoia doravante a organização do seu campo visual. Os senhores estão vendo que a ignorância é essencial para a conduta desse paciente, que só faz o que faz porque não compreende o fato. Essa modificação que, ao mesmo tempo, ocorre bruscamente e na ignorância de uma totalidade, permite melhor compreender o que é a subjetividade. Primeiro, compreender que perceberemos o subjetivo a partir de elementos objetivos que nos pareciam ultrapassar a adaptação normal, ou, ao contrário, permanecer aquém. Só compreenderemos que ocorre algo com o portador de hemiopia — que reconheceremos então como tal — a partir do momento em que ele nos disser: “O que está diante de mim é isso.” Eis a estrutura objetiva, prática, da realidade subjetiva. Constataremos, ao mesmo tempo, que o paciente não é um ser que está afetado apenas pela sua lesão — se estivesse simplesmente afetado por sua lesão, não haveria nada disso — mas é um ser que quer reorganizar uma tripla totalidade: atrás dele, o universo orgânico enquanto esse universo for em si mesmo um universo; nele, o campo da visibilidade sem mancha e sem perda; e, na frente dele, o objeto que ele deve ver para pegá-lo, para alimentar-se, para viver etc. Já evocamos essa tripla determinação, que reaparece aqui: assim, o doente deve viver em interioridade essa lacuna.
Mas, justamente, qual é a diferença com aquele homem que imaginamos, que sofre de uma semicegueira proveniente de uma experiência de laboratório? Este último adota uma práxis, afasta essa lacuna e a abandona à sua inércia. Ele declara: “É algo que não passa de um objeto exterior, que participa, é verdade, do meu ato de visão, mas fica na exterioridade porque se trata de uma estrita passividade, de uma lacuna. Ora, o que haverá de mais passivo que uma lacuna? O que há de menos ativo no sentido real do termo? Nada. E, ao mesmo tempo, vou me arranjar, me virar, vou virar a cabeça para a direita, para a esquerda, e fazer o que eu quiser.” É um homem que tem uma práxis baseada, além disso, em um conhecimento teórico. O que acontece com o outro, o que sofre mesmo de hemiopia? Ele também transforma o seu campo visual, afirmando as mesmas coisas, mas, como ignora a sua lacuna, ele a integra; ela se torna — ela, que era coisa exterior — totalmente interior. Ela foi retomada do interior, significando
que agora pode ser considerada um esquema prático, diretor, de toda a reorganização. Essa coisa, material e lacunar, acha-se bruscamente integrada na conduta graças ao não saber, porque ela é vivida sem distância, e a conduta garante a retomada sem distância de algo que pertence à exterioridade. Temos, então, de fato o indivíduo com hemiopia. A negação existe decerto, mas é negação que chega a uma integração: já não é a negação completa de uma práxis que mantém a distância, mas uma negação que é assunção por ignorância. É a negação cega do centro da carência que o instala no centro da nova vida orgânica. Essa negação cega, a recusa daquilo que muda, não é acompanhada pelo reconhecimento do ser lacunar; ao negá-lo, ela o integra no todo. O que equivale a dizer que o todo permanece, haja o que houver, e modificase pretendendo que não mudou, porque ele não conhece essa mudança. O doente não sofre de hemiopia porque perdeu metade do campo visual; problema incurável no momento atual, mas problema passivo, problema que nunca permanece assim; o doente sofre de hemiopia porque ele se torna doente, porque ele mantém do interior essa totalização integrando a carência. Eis uma primeira característica essencial para nós da subjetividade: se a subjetividade é, por definição, não saber, mesmo no nível da consciência, é porque o indivíduo, ou o organismo, tem de ser o seu ser. Há para isso duas maneiras, como já indicado: uma consiste em ser o seu ser material, como no caso do sistema material puro; a carência então está lá, e é tudo. A outra consiste em modificar, por uma prática, todo o conjunto para manter-se tal como se é ou então aceitar certas modificações para conservar o conjunto; é a práxis. É mais complexo, mas, entre o estado de inércia de um sistema e a práxis propriamente dita, há essa condição de toda interioridade, ou seja, que o todo não existe como algo dado anteriormente e que seria preciso, depois, manter, mas que ele é algo a ser mantido perpetuamente; não há nada a priori em um organismo, há, na realidade, uma pulsão constante, uma tendência que se funde com a construção do todo, e esse todo que se constrói é presença imediata para cada parte, não sob forma de simples realidade passiva, mas sob forma de esquemas que exigem das partes — o termo “exigem” é evidentemente analógico — uma retotalização em todas as circunstâncias. Estamos aqui diante de um ser cuja definição da interioridade é ter-de-ser seu ser, sob a forma de uma presença de si imediata, mas ao mesmo tempo com uma leve, a mais leve possível, distância sob a forma uma totalidade regida e autorregulada, ao mesmo tempo presente em toda parte e presença de toda parte nela; é que o todo é, na realidade, uma lei de interiorização e de perpétua reorganização, ou, se preferirem, o organismo é primeiro uma totalização e não um todo. O todo sendo uma espécie de
autorregulação diretriz, mas que traz perpetuamente essa interiorização como totalização. Totalização que se dá pela integração do exterior, que perturba, que muda; e o paciente com hemiopia é um exemplo disso. O todo, afinal, não é diferente da pulsão geral. Em outros termos, a pulsão e a necessidade formam aqui uma única e mesma coisa: não há primeiro necessidades, há uma necessidade que é o próprio organismo como exigência de subsistir. Só depois é que uma dialética complexa com o exterior, que não levamos em conta, traz uma especificação das necessidades particulares, mas, originalmente, a necessidade é que mantém tudo. Assim, ter-de-ser seu ser supõe que o ser seja em interioridade uma presença imediata. E isso em permanência, porque é uma presença imediata e sem distância, e que a subjetividade, como sistema de interiorização, não supõe nenhum conhecimento de si mesma em qualquer nível que a consideremos. Os senhores objetarão: “Mas há a consciência!” Sem dúvida, mas, como vimos, quando a consciência, em níveis superiores, faz da subjetividade seu objeto, essa subjetividade torna-se objetividade. Para ser plenamente antissemita, o indivíduo não precisa saber que o é, visto que estaríamos em uma reorganização de si mesmo.
Vejamos o segundo exemplo: o de um homem que manifesta sua subjetividade sem o saber, e que nem nós percebemos de imediato. O que quero indicar aqui é que essa interiorização do ser que acabamos de ver só pode ser compreendida se for praticada no nível desse triplo condicionamento: o ser de aquém, o ser de além e o ser da conjuntura, do que acontece naquele momento. O que me parece mais interessante aqui é notar que algo ocorreu nessa subjetividade. Vimos que o portador de hemiopia integrou e transformou o que era apenas uma lacuna inerte em conduta, uma conduta elementar de percepção, é verdade, mas uma conduta. No sentido em que podemos dizer — e veremos mais adiante que isso tem um significado do ponto de vista social — que, de repente, isso se encarnou: o que era pura inércia, jazida de negação, tornou-se, pela conduta, uma encarnação. Pode-se dizer, primeiro, que o portador de hemiopia escolheu assumir, de certo modo — ele escolheu sem saber, foi o seu ser mesmo —, essa lacuna inerte, e dela fazer sua própria realidade em interioridade. Pode-se constatar, em segundo lugar, que a singularidade, ou singularização, vem precisamente disso. Somos seres singulares a títulos diversos, mas sobretudo porque, em cada circunstância, assumimos em interioridade e manifestamos em nossa conduta o que seriam, na realidade, acidentes sem importância ou exteriores, ou ainda acidentes importantes mas mantidos a distância. A singularidade do portador de hemiopia, o que nele logo chama a atenção como singular, não é o fato da lesão, que podemos compreender muito bem e que é de tipo universal — uma lesão? Se nos derem as causas, podemos compreender que há pessoas que têm uma lesão. O estranho é que se eu lhe perguntar “O que está aí na sua frente?” ele me designe uma pessoa que não está lá. Essa é a singularidade; e essa singularidade não vem do nada, nem do próprio organismo quando ele não sofre com essa lacuna, nem da própria lacuna que é da ordem do universal, e sim da assunção de uma universalidade, pelo fato de assumi-la, e por sua transformação e sua integração. Vemos, assim, surgir o que se poderia chamar a singularização do universal. É um ponto socialmente importantíssimo, que retomaremos. Mas, no ponto em que estamos, podemos apenas dizer: há subjetividade quando um sistema em interioridade, mediação entre o ser e o ser, interioriza, sob a forma do ter-de-ser, qualquer modificação exterior, e que ele a reexterioriza sob a forma de singularidade exterior. E, é certo, o conjunto se faz sob a forma de uma pulsão, isto é, não se trata de algo inerte e sim de uma repartição violenta das energias orgânicas, num sentido ou noutro. Mas, poderiam objetar, no caso trata-se apenas de uma conduta elementar; por isso, proponho ir mais adiante e mostrar as mesmas coisas desenvolvendo-se no nível que costumamos designar como o da subjetividade, isto é, no nível humano.
Para tal, vou dar um único exemplo, verídico, que desenvolverei o mais completamente possível. Tenho um amigo íntimo[7] que colaborou, e ainda colabora, na revista Les Temps Modernes, revista dirigida por nós. Éramos umas dez pessoas à procura de um título para a revista. Como os senhores sabem, o projeto da revista era adotar uma posição crítica em relação à burguesia francesa, em geral aliada da direita e, ao mesmo tempo, se possível, uma posição crítica em relação a nós mesmos; nossa opção era pela esquerda, éramos aliados das forças de esquerda e examinávamos o mundo a partir desse ponto de vista, juntando compromissos e críticas, para ajudar a mudá-lo. Procurávamos por isso um título, e esse amigo propôs simplesmente Le Grabuge. Não sei se os senhores sabem, mas grabuge” é um termo francês popular, não muito usado, que aparece nos textos do século XVIII e que significa mais ou menos “violência anárquica”. Por exemplo, se em um bar as pessoas começam a gritar e a se insultar, pode-se imaginar que os burgueses dirão: “Vamos dar o fora! Vai haver grabuge.” Essa palavra evoca a violência, o sangue — o que nem sempre ocorre — e o escândalo; algo que acontece bruscamente e causa desordem. No momento daquela proposta, a subjetividade surgiu imediatamente e instaurou uma distância. Naturalmente éramos contra a ordem burguesa, naturalmente desejávamos colaborar ao máximo para o seu desaparecimento e a instauração de uma ordem socialista, mas em 1945 já não era mais o momento de fazer isso sob a forma de grabuge. “Grabuge” também podia significar que o meu amigo fosse passear, nu em pelo, nos Champs-Ély sées, convencido como estava de que qualquer escândalo valia para desmontar a consciência burguesa. Nesse sentido, havia uma curiosa discrepância, e é essa discrepância que tentarei explicar por que ela revela a subjetividade. Digamos que meu amigo se chama Paul, todos que o conheciam e ouviram sua sugestão logo disseram: “Só podia ser uma ideia do Paul.” Quer dizer que, na mera escolha de uma palavra, todos nós o reconhecemos. Por quê? Primeiro, porque Paul foi um surrealista. Ele deixou de ser surrealista, mas ainda tem saudades e, por isso, ficou no plano da repetição. Ora, o ato surrealista mais simples, como dizia Breton, é o grabuge. No fundo, pega-se um revólver e atira-se a esmo: é um ato escandaloso, mas também estritamente individual, tão destruidor de si como do outro. Os surrealistas eram ainda muito jovens quando começaram esse movimento e cultivaram certa violência que continuaram a mostrar, sobretudo no plano verbal, em alguns escândalos literários e artísticos; porém nunca pegaram um revólver para atirar
em quem passava na rua. Para a maioria deles, ficou um resquício disso que se recondiciona constantemente e se repete, mas em outras circunstâncias. Muito tempo depois do surrealismo, meu amigo Paul ia aos bares e insultava, de preferência, um homem bem maior e mais forte que ele; o resultado era Paul estirado no chão porque havia feito grabuge, recebendo uma reação que no fundo não temia; a impressão é que era o que ele procurava. Aqui se manifesta um comportamento repetitivo, ignorado sob esse aspecto pelo sujeito, e que corresponde a um condicionamento anterior, reinteriorizado. O surrealista será sempre um surrealista. Alguém poderá lembrar que os surrealistas tiveram destinos bem diferentes. Aragon, por exemplo, entrou no Partido Comunista e com certeza ele não daria o nome de Grabuge a uma nova revista, mas mais provavelmente Concorde, ou algo do gênero. Trata-se, por isso, de
uma situação muito particular, a ser interpretada como tal. Tem a ver evidentemente com a história social de Paul; história social que ele próprio costuma contar, porque ele se conhece e ao mesmo tempo não se conheceu quando sugeriu Grabuge. Ele se conhece de modo admirável, chegou a escrever excelentes livros a respeito de si mesmo e, quando diz Grabuge, está longe de pensar que aquilo que está descrevendo é o que vem à superfície, pensa apenas que escolheu um título adaptado a uma revista. Ele foi, e continua sendo, um pequeno-burguês, pequeno-burguês de família rica, que teve tal infância — seria muito longo contar aqui — e, por isso, a burguesia ainda o atrai e satisfaz; ele não consegue libertar-se de todo, sente necessidade pessoalmente, pela educação recebida, de algumas certezas burguesas, de certo conforto burguês e, ao mesmo tempo, detesta tudo isso. Encontra-se, portanto, na situação absolutamente clássica do chamado anarquista, não o anarquista de direita, pois ele é sinceramente antiburguês, mas sabe também com clareza que continua preso a certas coisas. Que ação é essa que ele repete sempre? É uma ação autodestruidora — destruir a ordem social pelo escândalo, destruindo a si próprio; ambas as coisas vão juntas. Em 1920, Paul apareceu no alto da escadaria da Closerie des Lilas e gritou: “Viva a Alemanha, abaixo a França!” Era tudo o que não se devia gritar em 1920. É fácil imaginar que as pessoas que estavam ao pé da escada o intimaram a descer, o que ele fez prontamente e, a seguir, passou três ou quatro dias internado no hospital. O que ele quis fazer? Destruir ao máximo a realidade burguesa por meio de um escândalo e, ao mesmo tempo, deixar-se destruir. Ou seja, destruiu em si mesmo a burguesia na medida em que ele tenta destruí-la no outro, sempre por um ato de violência autodestruidor e até suicida. Na palavra grabuge existe isso. Para nós, alguém que procura o grabuge é, por exemplo, um americano, desses que existem em Nova York e não sabem o que fazer à noite, e que entra em um bar com a única intenção de brigar com alguém. Que ele quebre a cara do outro ou que o outro quebre a cara dele, tanto faz: ele volta para casa satisfeito. O que houve foi essa autodestruição, a destruição da vida, a negação dessa vida pela violência.
Desse ponto de vista, ainda vamos mais longe na subjetividade, pois houve um momento em que, anos após a revolução soviética, o grabuge parecia a todos os partidos de esquerda a atitude mais conveniente para o intelectual. A burguesia era muito poderosa, a União Soviética estava nascendo, ameaçada por todos os lados e, tanto comunistas como mais tarde o próprio Trotski, por razões análogas, afirmavam: “O papel de vocês intelectuais é destruir a burguesia, destruí-la como ideologia. Como são ideólogos, roubem-lhe as palavras, arrasem-na, provoquem-na por meio de escândalos etc.” Atitude que teve incontestável valor tático nos anos 1925-1930, mas que hoje não faz sentido porque o problema social e o problema internacional se apresentam em termos bem diferentes. Em outras palavras, provocar qualquer escândalo em 1925 talvez tivesse um sentido político. Era, no mínimo, útil e deu resultado. Hoje, isso já não conta: na hora atual, a análise, o estudo e as discussões são bem mais eficientes para lutar contra as formas burguesas do que o puro escândalo. Paul manteve certo passado, não só um passado que lhe é próprio, mas também um passado relativo a seus compromissos com certos grupos literários e políticos, e é isso que provoca a discrepância do que ele propõe. Não é apenas a sua própria realidade burguesa, mas a manutenção de certa tática que foi válida em 1925 e hoje já não é, e que ele não superou; permaneceu ligado a ela, e aí está a subjetividade. Aliás, ele não propôs Grabuge como um título entre outros, ele o propôs como algo que devia nos comprometer: se tivéssemos aceitado, iríamos escrever os mais violentos artigos sobre a sexualidade, publicaríamos fotografias de todo tipo, teríamos feito a apologia do assassinato; nem sei tudo o que teríamos feito porque, se aceitássemos Grabuge, isso nos obrigaria de fato a fazer grabuge. O que indica que exteriorizar a subjetividade assemelha-se a uma formatação institucional: se tivéssemos aceitado a ideia de nosso amigo Paul, ele próprio ter-se-ia tornado, sua pessoa ter-se-ia tornado, por meio do título, uma espécie de obrigação para todos nós. A subjetividade é, no caso, muito evidente porque ou ela é aceita, e a pessoa subjetiva torna-se um conjunto de deveres para os outros, ou é recusada, e a proposta cai no esquecimento. Naquela ocorrência, recusamos porque estávamos seguros do que queríamos, e ela foi esquecida. Imaginemos, ao contrário, que estivéssemos procurando outra coisa, ainda na incerteza da definição, isso poderia ter decidido o destino da revista dando-lhe um título totalmente inadequado. Se a revista se chamasse Grabuge, seria, por exemplo, impossível atualmente publicar, como estamos fazendo com regularidade, matérias sobre a tortura na Argélia. Ia parecer que apresentamos tais coisas para escandalizar o leitor, ao passo que as publicamos para que isso seja corrigido e que termine a guerra da Argélia. Já o Grabuge deveria, ao contrário, regozijar-se com essa guerra. Aliás, o próprio Paul ultrapassou esse nível porque é hoje, por sua ação, o mais hostil contra a guerra da Argélia. Mesmo assim, teve a reação de propor aquele título, e o propôs por ser quem era, e por não conhecer a si próprio. Por isso, o momento em que ele se conhece e o momento em que ele se manifesta são completamente diferentes. Se, depois, lhe tivéssemos dito “Mas veja bem o que grabuge significa”, ele teria aceitado os argumentos que mostravam quão inconveniente era a sua proposta; mas, no momento em que ele a fez, apresentou argumentos objetivos como “Isso vai atrair os leitores, mostrará o lado negativo…” e não disse de modo algum “Isso me agrada, é isso o que eu quero”. Ele não disse isso porque não sabia. Como os senhores veem, a não objetividade, o não saber, a não distância de si são apenas uma e a mesma coisa. Por meio desse exemplo, podemos observar duas características que escrevem a subjetividade propriamente dita. Para o homem, há várias dimensões da subjetividade, a qual está no fundo da totalização dessas dimensões. Há o atual — eu diria, por exemplo, que o ser de classe de Paul ficou, a meu ver, atual, no sentido em que seu ser de classe, que consistia em certa maneira de recusar a burguesia mas sem conseguir separar-se dela, é uma coisa constitutiva do seu ser, não apenas do passado, mas de qualquer tempo; é verdadeiramente o seu ser de classe, em suma, o modo como ele está inserido na classe burguesa. Em compensação, a relação com o surrealismo é uma relação do passado, uma relação com o passado, porque, afinal, se ele não houvesse participado do movimento surrealista, se não tivesse, durante certo tempo, participado de um movimento que lhe permitia satisfazer a vontade de grabuge, ele não teria sentido essa vontade. Há, portanto, duas dimensões que é preciso perpetuamente retotalizar na subjetividade, e retotalizá-las sem as conhecer: o passado e, ao mesmo tempo, o ser de classe. O sujeito tem de ser o seu ser de classe, e ninguém o é, voltaremos a esse ponto. Tem de ser no sentido em que só se chega a sê-lo sob a forma de, perpetuamente, subjetivamente, determinar-se a sê-lo. Seja como for, tem-se de ser o seu próprio passado. Ver o passado como um conjunto de lembranças que é possível evocar será reduzi-lo a algo passivo, a um conjunto de objetos que se pode colocar diante de si e do qual se diz: “Houve tal coisa, depois outra; aconteceu-me isso, depois aquilo.” Nessa medida, já não é o eu, é um quase eu. Para que esse passado exista todo o tempo como possibilidade de ser posto a distância, é preciso que ele seja perpetuamente retotalizado; ou seja, é preciso que haja um aspecto constante da subjetividade que é a repetição.
O ser se retotaliza sem cessar, logo, ele se repete sem cessar, e Paul nunca deixou de se repetir nesse plano, desde a época em que gritava “Viva a Alemanha!” na Closerie des Lilas, até o momento em que propôs Grabuge, e bem mais tarde, em outras circunstâncias. Seu passado lá está, inteirinho, mas sob o modo do não saber, da não consciência, da reintegração necessária, e esse passado, por sua vez, está ligado de modo contraditório ao seu ser de classe; enquanto o seu ser de classe pode levá-lo a ser outra coisa, em circunstâncias diferentes, o passado, ao contrário, implica a repetição. Assim, a subjetividade aparece aqui como um ser de repetição, mas, ao mesmo tempo, é um ser de invenção. As duas características são inseparáveis pois, afinal, Paul se repete quando ocorrem circunstâncias constantemente novas, e assim ele projeta por invenção sempre o mesmo ser, mas em circunstâncias totalmente diferentes. Porque é uma invenção levar a pior em 1920, ao gritar “Viva a Alemanha!”. E é uma invenção propor para a revista o título Grabuge. É uma resposta adaptada — adaptação nem sempre muito brilhante, como ocorre com todos nós —, mas adaptada a circunstâncias novas por uma invenção que é nova. A matéria — se é possível dizer — da invenção é a subjetividade. Nunca se encontrará, nunca se compreenderá o que é a invenção do homem se tomarmos a pura práxis fundada sobre uma consciência clara; é preciso que haja por trás disso elementos de ignorância para oferecer uma possibilidade de invenção. Assim, cabe dizer que há duas características essenciais e contraditórias da subjetividade: por elas, o homem se repete indefinidamente, e o homem não cessa de inovar pelo fato mesmo de inventar a si próprio, já que há uma reação do que ele inventou sobre ele mesmo. Grabuge é, ao mesmo tempo, uma repetição e uma invenção. Mas há uma terceira característica essencial, sobre a qual não me alongarei porque já se faz tarde. Ela é, porém, essencial. Essa repetição-invenção em dada relação, imediata, sempre transcendente ao ser de exterioridade, chama-se projeção. Ou seja, o essencial da subjetividade é de ela só se conhecer por fora, em sua própria invenção, e nunca por dentro. Se ela se conhecer por dentro, está morta; se ela for decifrada por fora, então está plena, torna-se com efeito objeto,
mas ela é objeto em seus resultados, o que nos remete a uma subjetividade que, por sua vez, não é realmente objetivável.
Todos os testes projetivos só têm sentido se supusermos que nos projetamos continuamente no objeto. O teste projetivo, como sabem, é a resposta a uma pergunta feita por um aplicador de teste, e, nessa resposta, ou no conjunto de respostas, o sujeito se revela por inteiro. Mas como será possível haver perguntas particulares, para as quais, como no teste das imagens, o sujeito pode desenhar-se por inteiro, se ele não se desenhar por inteiro, constantemente e em todo lugar? É impossível imaginar que a projeção, que o teste projetivo, instale uma situação excepcional que, em dado momento, solicite o sujeito e o faça falar. Na realidade, ele nunca deixa de se projetar em toda parte, em tudo o que faz, em todos os seus gestos, em toda a sua realidade, e, por certos testes, ele se decifra, ele se projeta porque ele se decifra, mas ele mesmo não percebe isso. O caso mais nítido é o teste de Rorschach, que, como sabem, compõe-se de pranchas com formas e cores, mas sem estruturas definidas, e cabe, a quem se submete ao teste, nomeá-las.
Você pega uma prancha e, ao observá-la, acha que percebe o que há na prancha, tem a impressão de que as estruturas são evidentes, e assim você acaba se definindo sem saber. Em compensação, você pode corrigir-se pela comparação. No que me diz respeito, percebi evidências absolutas em um teste de Rorschach, mas bastou que eu visse outras interpretações para que, bruscamente — experiência curiosa, que todo mundo pode fazer em outras ocasiões, mas que nesse caso é constante —, o que era a visão objetiva de uma evidência se tornasse algo empobrecido e muito esquemático: a projeção de minha personalidade, sem que eu soubesse, aliás, o que isso quer dizer, mas lá onde eu via uns homens, outra pessoa via folhas de couve, e constatei que era possível, de fato, ver folhas de couve, quando o aplicador do teste me explicou. Imediatamente, meus homens, tão brilhantes, que eu continuava vendo — porque nunca deixei de vê-los — tornavam-se apenas o esquema empobrecido de algo em mim. E é desse modo que se deve, portanto, conceber a subjetividade, ou seja, que ela é perpétua projeção. Do quê? Na medida em que é uma mediação, só pode tratar-se da projeção do ser de aquém sobre o ser de além. O que nos dá então a possibilidade de compreender em que a subjetividade é indispensável para o conhecimento dialético do social. É porque só há homens, não há grandes formas coletivas, como Durkheim e outros idealistas sociais imaginaram, e que esses homens são obrigados a ser a mediação entre si de grandes formas de exterioridade que são, por exemplo, o ser de classe e da vida histórica cotidiana. Eles projetam, precisamente nessa vida histórica, o seu ser, mas eles o projetam em função da maneira como eles mesmos estão inseridos, eles criam, a cada momento, a singularização do ser de classe; e essa singularização, que é precisamente o modo de vivê-lo cegamente e em contradição com o seu próprio passado, é, portanto, um universal singular ou uma singularização universal. Nessas condições, é, ao mesmo tempo, algo que é movido pela história e uma estrutura indispensável da história porque, em tal nível, já não estamos diante de um ser de aquém, como estávamos diante de um ser de aquém orgânico, estamos em um nível mais complexo. Estamos diante do que chamei na Crítica da razão dialética, o prático-inerte, isto é, uma quase totalidade, em que sempre a matéria predomina sobre a pessoa, na medida em que ela mesma é mediação.[8] Assim, o lugar, o ser de um operário, por exemplo, na fábrica onde há máquinas automáticas, está definido de antemão. O lugar existe, é aquele lugar, não sob a forma de pura inércia, não sob a forma da exigência de um ser, mas sob a forma de uma exigência inerte da máquina. Pensemos no caso de certa fábrica que, no quadro do capitalismo, é obrigada a produzir tanto para ter tal lucro. Segundo tal norma, ela utiliza tal máquina, que
implica tal função humana e, portanto, tal salário. Supondo que o lucro do capitalista seja o mais alto possível e admitindo que se trate de máquina adquirida recentemente, um ser é assim definido, que certamente ainda não surgiu, e, com ele, o salário, a natureza do trabalho, incluindo o tipo de doença profissional e, por meio desse ser, toda a sua família. Escrevi no livro citado[9] que a operária é definida não só pelo tipo de divagação interior a que a máquina a obriga, mas pelo salário, pelas doenças, pela vida, pelo número de filhos que possa ter: se ela tiver quatro, o quarto morre. Seja de uma ou outra forma, a sociedade não ganha nada com isso, mas é certo que ela lhe dá com esse trabalho, que é extenuante, por um lado, e com o salário, por outro, a possibilidade de ter determinado número de filhos e nem um a mais, ou então a mãe terá de dá-lo, vendê-lo ou entregá-lo à Assistência Pública: a sociedade fez essa escolha. Se tudo isso é imposto aparentemente como exigências inertes, começa a surgir um mundo no qual as pessoas poderão lutar, opor-se, enganarse, dominar-se, a partir do momento em que uma subjetividade tem de ser isso. A realidade concreta e social não é essa máquina, é a pessoa trabalhando com a máquina, recebendo remuneração, casando-se, tendo filhos etc. Ou seja, o homem tem de ser o seu ser social, operário ou burguês, e tem de sê-lo de uma maneira que, primeiro, é subjetiva. O que significa que a consciência de classe não é o dado primitivo, longe disso, e que, ao mesmo tempo, deve sê-lo nas condições próprias do trabalho.
Citei outro exemplo nesse livro[10] que gostaria de considerar antes de lhes mostrar o que entendo sobre isso. Um tipo de operário foi definido em 1880 de modo mais nítido, pelo torno universal, a máquina universal,[11] o operário qualificado ou profissional que teve dois anos de aprendizagem, que tem orgulho de si e do seu trabalho, e que é cercado de simples operários. É a máquina que define isso. A partir do momento em que você dispõe de uma máquina universal e que ela não está estritamente ligada a tarefas que executa perfeitamente desde que seja comandada, você precisa de um homem que conheça a prática, um técnico que tenha um ofício; é a primeira coisa. Também tem de definir certo número de seres em torno desse operário qualificado, que serão também homens, ou, se preferirem, “sub-homens”, operários a quem será recusada qualquer qualificação real, que estarão lá para entregar uma ferramenta, para carregar o lixo para o outro lado da fábrica. A partir daí, está criado certo tipo de ser social, um ser que é preciso realizar. O operário qualificado vai realizá-lo, e isso significa que, subjetivamente, ele vai ser levado a valorizar o seu trabalho. Em vez de constituir, como hoje, uma luta de classes baseada na necessidade que inspira “um humanismo da necessidade”, “como ação direta de todo homem sobre todos os homens”,[12] houve um tempo em que era o trabalho, o trabalho verdadeiro, inteligente, hábil, que conferia valor. De fato, houve entre nós, nessa época, textos anarcossindicalistas que pareciam dizer que era menos injusto pagar ao trabalhador braçal um salário de miséria do que pagar mal ao operário
qualificado, no que eles omitiam o problema da mais-valia. Consideravam muito mais — era a tendência anarcossindicalista — que eram eles — com justiça, aliás — o próprio fundamento da sociedade, pois trabalhavam, fabricavam objetos que serviam aos outros, e que eles eram mal pagos, eles que faziam o melhor trabalho. Tinham eles uma ideia aristocrática do trabalho. Quanto ao trabalhador braçal, é claro que era preciso ajudá-lo, tratava-se de um pobre, mas a injustiça era menos evidente porque ele não sabia fazer nada. Instala-se então certa maneira de viver a situação subjetivamente, que tem de ser acompanhada por uma posição de valor. Aliás, as posições de valor têm importância imediata na luta, porque o operário qualificado vai, na maior parte do tempo, atualizar-se; ele lê bastante na época apesar das muitas horas de trabalho, ele lê, considera-se o verdadeiro homem que fará a revolução e incentiva o operário simples, ensina-o. Estamos então diante de uma espécie de aristocracia operária, e em torno há gente que vai ser ajudada, mas que, por enquanto, é de fato muito inferior, até no âmbito da classe operária. Isso se traduziu pela opção da forma de sindicalização: quando, em dado momento, tratou-se de formar sindicatos da indústria, os operários qualificados preferiram um sindicato de ofícios, porque, deste, os outros operários estavam excluídos; só o grupo das profissões era por ele representado. Objetivamente, isso provocou um tipo de luta sindicalista que era, na época, verdadeiro, porque bastava que os operários qualificados de uma fábrica entrassem em greve, ou seja, a minoria, para que a fábrica fechasse de todo, mesmo que os peões quisessem trabalhar. Naquele momento, havia uma prática sindical, um tipo de valorização de si, uma relação com os operários, com os peões, um tipo de luta e uma organização que correspondiam rigorosamente ao que eles eram, ao que era a máquina. Não se trata de dizer que estavam errados ou que estavam certos: eles eram tudo aquilo que a máquina universal lhes permitia ser. Ela estava neles como superior, eles a interiorizavam, e essa interiorização ou subjetivização dava esse conjunto que foi o anarcossindicalismo.
Assim, não é, como pretende Lukács, porque eles não percebiam a totalidade do que são a classe operária e a luta de classes operária. Ao contrário, porque, no centro da produção, eles a percebiam como ela era na época. É verdade que, naquele momento, eles eram bem mais qualificados que os outros, mas também é verdade que isso levou à formação de sindicatos amarelos, a uma ordem de cavalaria operária, uma porção de elementos secundários aberrantes que traduziam essa concepção, essa interiorização sob forma de superioridade, superioridade social, que desapareceu em todo lugar onde a máquina semiautomática primeiro, e, depois, a máquina automática, substituíram o trabalho qualificado. Mas, na época, eles não podiam prever, nem na prática nem na sua luta, a existência de máquinas semiautomáticas. É claro que Marx a descrevera em O Capital, mas ele era um teórico, um chefe da Internacional, não era o operário que luta a cada instante da vida, que é feito, ele, por essa máquina, e que, ao mesmo tempo, a transforma em interioridade. O que significa que a própria consciência de classe tem limites, que são os limites da situação, enquanto a situação, ou a contradição, não está completamente visível. Seja qual for o grupo considerado, a consciência de classe é limitada pelo modo como um ser de classe é definido pelo movimento do progresso das máquinas e do crescimento da indústria. Vamos, por isso, declarar que tal tipo de consciência de classe foi inútil? Vamos julgar que os anarcossindicalistas não eram os homens de que se necessitava? Ao contrário. Foi porque eles tiveram consciência de sua força, de sua coragem e de seu valor, porque criaram sindicatos, instauraram formas de luta que não foram eficazes, é que outras formas de luta puderam emergir no momento em que surgiram os operários especializados. Constatamos assim que, no desenrolar da luta, o momento subjetivo, como maneira de ser no interior do momento objetivo, é absolutamente indispensável ao desenvolvimento dialético da vida social e do processo histórico.

Notas.
1. Karl Marx, OEuvres III, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1982, p. 460.
2. “A descoberta feita mais tarde de que os produtos do trabalho, como
valores, são a expressão pura e simples do trabalho humano despendido em
sua produção marca uma etapa na história do desenvolvimento da
humanidade, mas não dissipa a fantasmagoria que faz aparecer o caráter
social do trabalho como característica das coisas, dos próprios produtos. O que
é válido apenas para essa forma de produção particular, a produção mercantil,
ou seja: que o caráter social dos mais diversos trabalhos consiste em sua
igualdade como trabalho humano, e que essa característica social específica
reveste uma forma objetiva, o valor dos produtos do trabalho; tal fato, para o
homem preso nas engrenagens e relações de produção das mercadorias,
parece, antes como depois da descoberta da natureza do valor, igualmente
invariável e de ordem toda natural como a forma gasosa do ar, que
permaneceu a mesma tanto depois como antes da descoberta de seus
elementos químicos” (Le Capital, 4, in Karl Marx, OEuvres I, Bibliothèque de la Pléiade, 1965, p. 608).
3. Introduction à la critique de l’économie politique [1857], Paris, Éditions sociales, 1972, p. 170.
4. Visto que ela não pode ser objeto de conhecimento.
5. O antissemitismo torna-se para esse operário “objeto refletido”, “objeto de
reflexão”.
6. A hemiopia é um distúrbio da visão caracterizado pela perda parcial do campo visual. A lesão sofrida não ocorre nos globos oculares propriamente ditos, mas nos centros visuais cerebrais (lobos occipitais) ou nas vias que os unem à retina. No caso de hemiopia lateral homônima (que é a mais frequente) direita, por exemplo, o paciente é incapaz de ver o que se passa na parte direita do seu campo visual. O sujeito nem sempre tem uma consciência nítida desse distúrbio; o incômodo provocado pode ser compensado por uma simples rotação da cabeça. No caso da hemiopia bitemporal, o paciente só pode ver o que está na sua frente, como se olhasse pelo visor de uma arma. Extraído do Nouveau Larousse Médical, 1981.
7. Ao que tudo indica, trata-se de Michel Leiris.
8. A seguinte citação permite especificar a definição do prático-inerte: “Esse
homem permaneceu o homem da necessidade, da práxis e da escassez. Mas,
enquanto é dominado pela matéria, sua atividade já não deriva diretamente da
necessidade, embora esta seja a sua base fundamental: mas é suscitada nela,
de fora, pela matéria trabalhada como exigência prática do objeto inanimado.
Ou, se preferirem, é o objeto que designa seu homem como aquele de quem
se espera certa conduta” (Jean-Paul Sartre, Critique de la raison dialectique,
Paris, Gallimard [1960] 1985, p. 296).
9. Ibid., p. 341-343.
10. Ibid., p. 348-350.
11. “Ao complexo ferro-carvão, corresponde a máquina dita ‘universal’. Assim
é designada a máquina — como o torno na segunda metade do século XIX —
cuja tarefa permanece indeterminada (por oposição às máquinas
especializadas da semiautomatização ou da automatização) e que pode realizar
trabalhos muito diferentes contanto que seja dirigida, preparada e controlada
por um operário hábil e competente” (ibid., p. 348).
12. Ibid., p. 351.
*A versão do escrito em língua portuguesa foi publicado em: SARTRE, Jean-Paul.O quê é a Subjetividade?. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. Tradução de Estela dos Santos Abreu.

A Tentação do Realismo.

https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2015/08/29/a-tentacao-do-realismo-gianni-vattimo/


Gianni Vattimo*
“Não existem fatos somente interpretações”. Esta frase de Friedrich Nietzsche, que, mesmo com alguma cautela (já que poderia soar ainda como uma outra afirmação metafísica ), pode ser assumida como a divisa da ontologia hermenêutica, é também aquela sobre a qual versam as polêmicas daqueles que, sempre mais freqüentemente nos últimos tempos, cedem àquela que proponho de chamar “tentação do realismo “.
Mas é necessário recordar que no contexto no qual escreve ( uma nota de 1886 – 1887 ) Nietzsche acrescenta também que “isto já é interpretação (Ausfegun )”.
É tão obvio que, também e sobretudo com esta reserva, a frase de Nietzsche equivalha a uma afirmação metafísica da irrealidade do mundo, a uma espécie de idealismo empírico de tipo berkeleyriano? Existe quem atribui um idealismo como este também a Richard Rorty, que fala explicitamente de filosofias (e obras de arte, e Weltanschauungen individuais, e também paradigmas científicos) como de “redescrições” do mundo – portanto supondo que, de qualquer modo, alguma coisa como um mundo, o mundo, se dê, mesmo se acessível somente sempre do ponto de vista aberto por uma redescrição.
No caso de Nietzsche, nem a realidade do mundo se reduz à percepção do sujeito, nem o sujeito que percebe tem, por sua vez, um estatuto ontológico mais sólido do que aquele das suas pretensas “ilusões”.
Do que se trata em Nietzsche como em Rorty e na ontologia hermenêutica contemporânea, não é uma opção metafísica a favor do subjetivismo contra o objetivismo, ou a favor do irrealismo (idealismo) contra o realismo. O “jogo das interpretações” não é absolutamente um conjunto de movimentos arbitrários no qual o sujeito, conscientemente ou até abandonando-se surrealisticamente ao próprio inconsciente criativo, cria imagens de “realidade” a opor (mas porque, depois?) àquelas dos outros.
O jogo também é sempre de fato um conflito: provavelmente, usar um termo menos duro significa somente, indicar um telos, um ideal regulativo na direção do qual se mover, que é justamente o que ocorre também com a noção nietzschiana de vontade de poder, a qual não se refere só e definitivamente a um embate de forças físicas para a prepotência dos outros, mas justamente no seu movimento de ultrapassagem supera também as várias concretizações do poder, os “interesses” dos particulares centros de vontade (sobre cuja “realidade” e “ultimidade” Nietzsche nutre justamente muitas dúvidas).
Logo: pensar o jogo das interpretações, também e antes de tudo como conflito, ou as redescrições como algo que se mede com descrições já dadas, ou os paradigmas kuhnianos como abertura que se assemelham à instituição não sempre pacífica de novas tábuas de valores, ou o evento da verdade heideggeriano justamente como evento, como cesura e descontinuidade, também como desadaptação e angústia – tudo isto seria na verdade reconduzível a uma ontologia ilusionista, ao esteticismo de uma concepção da realidade totalmente “virtual”, que não deveria nem mesmo acertar as contas com o peso concreto dos meios técnicos que a tornam possível? (Dito de passagem: a violência das proibições que hoje se exercem contra as drogas além de responder notoriamente aos interesses das narco-máfias, não seria também inspirada em profundas resistências contra   qualquer “aliviamento” do “real” – uma resistência contra a virtualização sentida como culpa, abandono esteticista ao arbítrio das paixões? Contudo, a vida dos drogados é totalmente diferente de um jogo, de uma diversão, etc. …).
Com respeito a hermenêutica e a ontologia que ela pressupõe (mais ou menos explícita e conscientemente), os realistas pecam justamente pelo pouco realismo: não conseguem alcançar e descrever “adequadamente” a experiência da qual ela parte, sobre a qual, se se quiser, se fundamenta. Excluem que possa existir uma experiência verdadeira porque a acham demasiadamente pouco realista, muito contrastante com os princípios que regem cada possível realidade.
No entanto, esta experiência é a que constitui efetivamente a “realidade” de muita filosofia contemporânea: de Nietzsche a Heidegger e a toda a galáxia do pensamento pós-moderno; mas também de várias escolas da psicanálise, de muitas posições filosóficas e epistemológicas pós-analíticas …
A problemática nietzschiana da morte de Deus, a heideggeria na da superação da metafísica, que podem ser reunidas sob a categoria comum de niilismo, dão lugar ao que uma lógica rigorosamente metafísica define auto­contradições performativas. (“Não existem fatos mas somente interpretações…”), que só podem ser removidas do panorama do pensamento contemporâneo com o apelo ao princípio de não-contradição? O argumento lógico contra o cético nunca convenceu alguém a abandonar as próprias “convicções” céticas.
Parece que justamente o realismo, diante de um fenômeno tão complexo e vasto como o do niilismo difuso na cultura e na existência de hoje (a koiné hermenêutica nos seus múltiplos aspectos), deveria recusar-se de explicá-lo como o resultado de um banal erro lógico, como se fosse verossímil que uma cultura inteira tenha subitamente esquecido o princípio da não contradição.
Sublinho esse paradoxo porque me parece decisivo. Enquanto Heideggger, não só a partir da virada dos anos trinta, se esforçou de “justificar” a própria filosofia em termos épocais – que chamarei também empíricos, no sentido da experiência como fato não redutível ao imprimir-se de sinais sobre a tabula rasa da mente- aqui se busca dar conta de todo o mundo do qual a hermenêutica quer ser teoria, interpretação, etc., com o apelo a um engano lógico; além disso, com um recurso que desde sempre acreditou de poder valer como argumento vitorioso e não funcionou nunca como tal.
Propus falar, a propósito da cultura – não só filosófica ­ do mundo ocidental, tardo-industrial, pós-moderno, que é o nosso, de uma koiné hermenêutica. Como todas as pré­ compreensões hermenêuticas, também esta é uma imagem vaga, que parece muito marcada por uma espécie de impressionismo filosófico-sociológico; para muitos parece, com alguma razão, uma generalização ambiciosa em demasia, que unifica uma multiplicidade de fenômenos totalmente heterogêneos.
Todavia, assumir o risco de concentrar a atenção sobre a koiné hermenêutica como característica global, e vaga, da nossa cultura atual, é indispensável para qualquer com­ preensão teórica não superficial da mesma, capaz de alcançar um fio condutor interpretativo.
É esse o primeiro passo na direção de uma “ontologia da atualidade”, na direção de um pensamento que ultrapasse o esquecimento metafísico do ser, esquecimento que se perpetua até quando o pensamento se mantém na confusa fragmentação dos saberes especializados e dos múltiplos papéis sociais em que nós modernos nos encontramos jogados.
Hermenêutica; como se sabe, é a filosofia que coloca no seu âmago o fenômeno da interpretação, quer dizer, de um conhecimento do real que não se pensa como espelho objetivo das coisas ” lá fora”, mas como uma preensão que traz consigo a marca de quem “conhece”. Luigi Pareyson a definiu “conhecimento de formas por parte de pessoas”, como um nachschaffen em que o sujeito cognoscitivo alcança a coisa na medida em que, reconstruindo-a como forma, exprime nesta reconstrução também a si mesmo, posto que estende e explora uma similaridade de base que pode ter diversos graus mas que não está nunca ausente do todo.
Tem sentido conceber o conhecimento nestes termos? Pode-se razoavelmente pensar que a similaridade de que fala Pareyson (e que ele, recordemos, reconhece como base do conhecimento dos outros e da experiência estética) não esteja tão longe do que Kant chamava esquematismo.
Qualquer que seja o valor desta aproximação, lembre­mos que a hermenêutica de hoje é uma, mesmo que remota, continuação do kantismo. O mundo é fenômeno, quer dizer uma ordem de coisas que o sujeito entra ativa­ mente a constituir. Em Kant, contudo, existia ainda a idéia de que as estruturas a priorí do sujeito fossem iguais em todos os seres racionais constituídos .
No século XX, depois de Heidegger, estas estruturas vêem reconhecidas na sua radical historicidade. Não só não conhecemos nunca a não ser fenômenos; mas esses se dão somente no quadro do que Heidegger chama um projeto jogado. Conhecer, já a nível das puras e simples percepções espaço-temporais, significa construir um fundo e um primeiro patamar, ordenando as coisas com base numa pré-compreensão que exprime interesses, emoções e que herda uma linguagem, uma cultura, formas históricas de racionalidade. As coisas aparecem- se dão como entes “vêem ao ser”-, só no horizonte de um projeto, senão não se deixam nem mesmo distinguir do fundo e entre elas.
Por conseguinte, pode-se também definir a hermenêutica como um kantismo que passou pela experiência existencialista da finidade e, logo, da historicidade. Uma transformação em cuja base está a analítica existencial de Sein und Zeit[1], que por sua vez herda muitos elementos do pragmatismo (as coisas são antes de tudo e no mais das vezes instrumentos; e por isso se dão somente num projeto…), o que muito realismo de hoje tende a colocar de lado sem tê-lo verdadeiramente discutido.
Tem a hermenêutica, assim, sumariamente definida, a pretensão de exprimir o “espírito do tempo “, de propor-se como a koiné dos últimos decênios da cultura ocidental?
Provavelmente não existe nenhum aspecto do que é chamado de mundo pós-moderno que não esteja marca­ do pelo alastrar-se da interpretação. Numa relação sumária pode-se lembrar em desordem:
1) a difusão dos meios de comunicação de massa, que, paradoxalmente, não desenvolve tanto a consciência vaga e geral do seu caráter de agências interpretativas não neutras e “objetivas”;
2) a auto-consciência da historiografia, para a qual mesmo a idéia de história é um esquema retórico, que por conseguinte não pode mais valer como princípio de realidade em que confiava grande parte da filosofia moderna depois, e como alternativa, à fé empirista e positivista nos fatos verificáveis pela sensação ou a experimentação;
3) a       palavra de ordem da   multiplicidade das culturas, que, com a sua mesma consistência de códigos capazes de durar, desmentem uma idéia unitária, progressiva, de racionalidade;
4) a destruição psicanalítica da fé na “ultimidade” da consciência. E assim enumerando, até a teoria dos paradigmas amadurecida na mesma autoconsciência dos cientistas.
A frase de Nietzsche: “não existem fatos somente interpretações, e esta também é uma interpretação”, poderia na verdade ser desmontada, mostrada como auto-contraditória através de joguinho lógico, e por conseguinte declarada “falsa”, quando é a fórmula que, mesmo se imprecisa e vagamente, resume todos estes “fatos de experiência” compartilhados?
Não estou, contraditoriamente, pretendendo que a hermenêutica, sintetizada na frase de Nietzsche, seja a descrição mais adequada da cultura tardo-moderna. Defendo, pelo contrário, que ela é a interpretação mais razoável.
Que seja uma interpretação, significa que se formula conscientemente no quadro de um projeto; e de um projeto jogado, segundo a terminologia de Heidegger. Que quer, por conseguinte, ser reconhecida como interpretação racional em vista de um telos que escolhe enquanto, de certa maneira, aí já se encontra comprometida, porque lhe pertence histórico-destinalmente.
Nem a idéia de razão, de bom senso, em base a qual a hermenêutica quer ser avaliada, nem os argumentos específicos que pode alegar para corroborar-se à luz deste critério, são externos à sua específica condição histórica, ao seu destino. Seria este um sintoma de submissão ao irracionalismo, ao relativismo das Weltanschauungen, em gênero demonizado porque no seu fundo se entrevê a luta violenta de todos contra todos, uma espécie de retorno à selva primitiva?
Como tentei  mostrar em Oltre l’interpretazione, a hermenêutica  se configura como puro e perigoso relativismo só se não se leva bastante a sério as próprias implicações niilistas.    Posto que a “verdade da hermenêutica” como teoria alternativa a outras (e antes de tudo ao conceito de verdade como “reflexo” dos “fatos” ) não pode se legitimar pretendendo valer como uma descrição adequada de um estado de coisas metafisicamente estabelecido (“não existem fatos, somente interpretações”) mas deve reconhecer-se também como uma interpretação, a sua única possibilidade é a de argumentar-se como tal,     quer dizer, como uma “descrição” interna ou leitura sui generis da condição histórica na qual é lançada e que escolhe orientar numa direção determinada, pela qual não existem outros critérios a não ser os que herda, interpretando, desta mesma proveniência.
Ora, a proveniência vista como legitimação da verdade da hermenêutica não pode se apresentar senão sob a luz do niilismo; só um ser que procede, indefinidamente (e não “infinitamente”) para o seu próprio enfraqueci­ mento legitima a afirmação da idéia de verdade como interpretação e não como correspondência.
Se não fosse assim, a hermenêutica seria só uma teoria metafísico-descritiva da pluralidade irredutível das culturas; mas enquanto metafísico-descritiva, seria ainda vítima, e dessa vez de maneira insustentável, de uma auto­ contradição performativa-insustentável justamente por que esta auto-contradição refuta mesmo, e talvez sobre­ tudo, quem pretenda que o verdadeiro é adequação ao estado das coisas.
Levar em conta o alastramento da interpretação na cultura pós-moderna, e tentar pensar também esta atitude como uma interpretação e não como nova metafísica relativista, significa assumir a responsabilidade de mover-se em uma direção, sabendo-se proveniente, condicionado, histórico.
Nesta perspectiva, que reivindica os direitos do realismo, ou da metafísica como reflexo cognoscitivo e prático da verdade objetiva do ser, é um interlocutor igualmente “interpretante” como um outro qualquer. Faz hermenêutica sem sabê-lo, se diria parodiando Molière. Interpreta com vista a um projeto, que porém não reconhece como tal por que crê ser movido pela pura vontade da verdade como reflexo da estrutura das coisas “lá fora”.
As boas razões do hermeneuta contra o realista, mas também contra o relativista metafísico, ou contra o metafísico tout court, são atribuíveis à predileção racional do projeto que inspira a sua interpretação da proveniência. Começando pelo fato que projeto e interpretação são reconhecidos por ele como tais, e se colocam explicitamente em jogo. Enquanto o metafísico – realista, relativista, naturalista ou o que seja- é sempre como aquele que acredita de (poder) falar de lugar algum, que não leva em conta (e em jogo) a si mesmo na sua imagem do conhecimento, e está, portanto, ele sim, exposto ao efeito devastador das contradições performativas.
A sua vontade de verdade começa com o admitir como óbvio que a sua imagem do conhecimento significa o reflexo objetivo do estado das coisas, e que este reflexo seja possível e desejável como valor final para o conhecimento e para a ação. Do mesmo modo, numa linguagem menos decididamente hermenêutica do que a heideggeriana, por exemplo do ponto de vista do agir comunicativo de Jurgen Habermas, se poderia dizer que aqui ocorre uma generalização “colonizante” de todas as esferas do agir do ponto de vista do agir estratégico: pode-se, com certeza, reconhecer que saber como estão as coisas em um certo âmbito é necessário e útil em vista de qualquer fim; mas quanto a este fim, na medida em que por último devemos pensá-lo não mais como meio para outro, não vale como certo referir-se ao verdadeiro como correspondência, e se é inevitavelmente reenviado ao projeto.
Um projeto que tenha como valor último o reflexo das coisas como são, que, por exemplo, pense que a emancipação da humanidade ou também, mais modestamente, a felicidade ou a perfeição do indivíduo consista no conhecimento do verdadeiro-objetivo, vai de encontro a todas as objeções, e verdadeiras e próprias contradições, de cada teoria que não dê conta da historicidade, e antes de tudo da sua própria historicidade.
A preferência racional – repitamos, do ponto de vista de uma noção de racionalidade que se deixa apreender interpretativamente até a proveniência mesma – da hermenêutica se opõem, por parte do realismo nas suas várias formas, sejam razões metafísicas (a auto­contraditoriedade do niilismo); seja, já que no fundo aquelas têm somente a aparência da “definitividade”, motivações menos abstratas e ligadas pelo contrário a exigências históricas e pragmáticas.
Ora, enquanto a ontologia hermenêutica pode não se importar, em nome da experiência histórica e do espírito do tempo, com o argumento anti-cético pretenso vence­ dor, ela é sensível porém àquelas objeções que se reclamam justamente dessas fontes.
Rejeitar a hermenêutica enquanto ontologia niilista parece necessário, em primeiro lugar, porque de outra maneira ficaria minada a validez das ciências experimentais da natureza. A maior parte das alternativas que se apresenta nos debates filosóficos contemporâneos, e antes de tudo aquelas que, só por comodidade esquemática, se podem relacionar à oposição entre “analíticos” e “continentais”, tem entretanto como adquirida a validez, neste sentido geral, das ciências experimentais.
O niilismo hermenêutica parece uma ameaça à esta validade enquanto vem, arbitrariamente como se viu, identificado com uma metafísica relativista, a qual teria também e sobretudo como conseqüência colocar em perigo a autoridade prático-social da ciência. Este risco é tão mais temido quanto mais o pluralismo cultural das sociedades industriais avançadas comporta o possível difundir-se de um caótico pluralismo científico e tecnológico, como reflexo que coloca em discussão graves questões de alcance social e político.
As recentes e ainda vivas polêmicas, e as verdadeiras e próprias manifestações sociais, que ocorreram na Itália sobre o assim chamado “método Di Bella“, nome de um médico idoso que inventou uma cura contra o câncer demonstrada, até o momento pelo menos, como ineficaz pela medicina oficial (e cujos alto custos, por isso mesmo, não são reembolsados pelo serviço nacional de saúde) é só um primeiro sintoma do que poderia acontecer numa sociedade onde não se reconheça mais a autoridade da ciência, e a admissibilidade ou menos dos sistemas de cura, ou de outros saberes de importância para a vida individual e coletiva se as decisões forem confiadas a pessoas “não qualificadas”. Lembrarei que hoje, por exemplo, também as medicinas homeopáticas não são reembolsadas pelo serviço nacional de saúde italiano. Para não falar das despesas com terapias psicanalíticas.
A hermenêutica, seja com a sua ontologia niilista, seja sobretudo com o apelo à historicidade dos saberes, ao seu envolvimento com a distribuição do poder social, ao seu caráter global não desinteressado, produziria segundo os seus críticos um perigoso efeito de deslegitimação da ciência, além e mais gravemente do que da moral.
De anarquismo metodológico, em outros termos, se pode mesmo discutir em círculos restritos de epistemólogos e cientistas; mas quando isto se torna uma espécie de sentir comum, e se difunde também além dos circuitos acadêmicos através do trabalho de desconstrução de tantos críticos que se inspiram nos trabalhos de Derrida, é necessário reivindicar energicamente o princípio de realidade, quer dizer, a validade não puramente histórica das proposições cientificamente asseguradas.
Mas, anarquismo metodológico não é uma expressão inventada pela hermenêutica niilista; provém do ambiente de filósofos considerados, ao menos em princípio, respeitosos da ciência e do seu realismo .
O fato é que – como de resto, é sempre mais claro se se pensa na dificuldade de se adotar literalmente a divisão entre “analíticos” e “continentais” (que em geral é citada quase somente para declará-la obsoleta e indefensável) -uma ontologia niilista parece mais o êxito comum, seja da tradição analítica como da continental, pelo menos na medida em que esta última se pode identificar com a hermenêutica.
Numa lista dos aspectos da cultura contemporânea da qual o niilismo quer se apresentar como interpretação” adequada” não entram só a mediatização da sociedade, o pluralismo das culturas, o desmentido freudiano da “ultimidade” da consciência, a secularização da religião e do poder; mas também e sobretudo os desenvolv imentos “irrealisticos” das ciências e a epistemologia que as acompanham.
Tome-se como exemplo uma passagem de Razão, verdade e história ( 1981 ) de um filósofo da tradição analítica como Hilary Putnam, quando escreve: “Perguntar-se de quais objetos é constituído o mundo tem sentido somente no interior de uma dada teoria ou descrição” ; a verdade ”é uma espécie de aceitabilidade racional … antes do que correspondência com um ‘estado das coisas’ independente do discurso e da mente” (tradução italiana: II Saggiatore, 1985, pág. 57). É, como se sabe, o que Putnam chama “realismo interno” ou perspectiva “internista”- oposta a perspectiva “externista” do “realismo metafísico, segundo o qual o mundo consiste em uma certa totalidade fixa de objetos independentes da nossa mente, existe exatamente só uma descrição verdadeira e completa de como ‘é o mundo’, e a verdade comporta uma relação de correspondência de algum gênero entre as palavras ou os signos do pensamento, e as coisas externas, ou o conjunto de coisas externas …”(ivi).
Quem sabe se Putnam pensa que esta tese internista seja uma descrição exata do estado de coisas? Devemos supor, assumindo que ele não seja gravemente incoerente, que também argumentaria a aceitabilidade racional da sua tese baseando-se em apelos à experiência do tipo daqueles, vagos e impressionistas, as quais se refere a hermenêutica. Ver o seu livro Rinnovare la filosofia (1992), tradução italiana Garzanti, 1998).
Não existe, nem mesmo para o mais dogmático realismo metafísico, a possibilidade de qualquer experimentação crucial que prove realisticamente uma tese, porque cada delimitação do âmbito de relevância é já, e sempre, um ato interpretativo; com maior razão, um realismo interno como o de Putnam dificilmente pode se subtrair à deriva, ou ao verdadeiro e próprio rompimento historicista e às suas implicações niilistas.
Com certeza, o realismo interno de Putnam não é o único êxito da epistemologia analítica e pós-analítica, nem mesmo talvez uma posição teórica dominante naquele âmbito. Junto a tantos outros aspectos desta tradição, mostra contudo ao menos uma certa racionalidade da tese segundo a qual a ontologia niilista da hermenêutica tem bons títulos para apresentar-se como a koiné da cultura da nossa época.
Se, como se poderia demonstrar mais amplamente, o niilismo hermenêutica não ameaça a ciência mais do que o fazem muitas teorias epistemológicas consideradas amis­tosas e atentas aos seus direitos, o que resta da polêmica realista contra a hermenêutica? Coerentemente com as convicções de base dos hermeneutas, segundo os quais cada reivindicação da verdade é movida por um projeto, isto é, por um interesse, é necessário perguntar-se a quais exigências conduz esta polêmica.
O que existe no fundo da necessidade de falar da realidade como algo de existente, na expressão de Putnam, uma totalidade fixa de objetos independentes da nossa mente? Se consideramos a “tentação do realismo” nos seus aspectos de uma nova moda filosófica, podemos encontrar um certo número de motivações contingentes, a não subvalorizar mas provavelmente não exaustivas: banal revolta geracional contra a hermenêutica que, enquanto koiné, é enfim um paradigma consolidado, se bem que matizado; neurose fundamentalista que percorre associedades tardo-industriais como reação regressiva de defesa contra a babei pós-moderna das linguagens e dos valores ou, simplesmente, em certos filósofos acadêmicos, apelo à ordem de uma filosofia que, segundo eles, deveria tornar a ser, como nos tempos do positivismo e do neokantismo imperantes, pesquisa (quase) positiva sobre os mecanismos do conhecer.
Motivações não inverossímeis, mas não exaustivas. Uma conclusão que deveria ainda: a) mostrar posteriormente que a hermenêutica não é de modo algum idealismo empírico, que não se sonha absolutamente em colocar em dúvida a “passividade” da sensibilidade, para usar a terminologia kantiana; b) que falar, para esta “passividade” da recepção de mensagens ou melhor, de choque com objetos, gravação de impressões sob a tabula rasa da mente, etc., não coloca em perigo nem a busca do conhecimento científico, nem o ter os pés na terra, na vida cotidiana, nas relações com os outros, etc.
Posto que, como disse no início, me refiro aqui somente aos primeiros movimentos de um trabalho in progress sobre o conceito de realidade, limito-me a indicar dois temas conclusivos, insistindo no fato que vale plenamente para a ontologia hermenêutica a análise da experiência levada a cabo por Heidegger em Sein und Zeit, que era uma análise pragmatista, mas certamente não berkeleyriana.
Para seguir o Heidegger do segundo período, da ontologia niilista do evento, não é necessário abandonar completamente   a   consciência   originariamente fenomenológica da experiência como encontro com o seu “outro”. A analítica existencial, traz assim para a fenomenologia a indispensável abertura para a dimensão histórica do encontro. A reserva de Nietzsche: “também esta é uma interpretação”, não equivale a restabelecer a diferença entre coisas em si e esquemas mentais que antes Husserl, e depois Davidson e outros, justamente colocaram de lado.
Isto com relação a interpretação ser “somente” uma interpretação, não ser o mundo lá fora, como totalidade fixa de objetos independentes do meu conhecimento, mas sim a herança de outras interpretações, por sua vez inseparáveis do que se apresentava a elas como objeto.
Não é por acaso que Heidegger chama justamente este transmitir-se de interpretações (inseparáveis dos fatos que interpretam) a “história do ser”. Até o apelo a objetividade das coisas como são em si mesmas conta somente enquanto é uma tese de alguém contra outro alguém, e enquanto é uma interpretação motivada por projetos, por sofrimentos, por interesses também no melhor sentido da palavra. A realidade “mesma” não fala de si, tem necessidade de um porta-voz – quer dizer justamente, intérpretes motivados, que decidem como representar sobre um mapa um território ao qual tiveram acesso através de mapas mais antigos.
Se se abandona a idéia dos esquemas mentais contrapostos ao mundo como estável conjunto de objetos independentes, torna-se evidente que a passividade da experiência do mundo é mais proveniência ( ser jogados, não começar de zero, de si, etc.) do que não receptividade de órgãos de sentido sempre “objetivamente” iguais.
Que a realidade seja a (nossa) história não a faz, por isso, uma fábula; já que se o mundo verdadeiro tornou-se fábula, como escreve Nietzsche, dessa forma é também a fábula (o esquema mental que deveria reduzir tudo a si) que foi negada.
Daqui pode partir, me parece, uma recuperação hermenêutica da “realidade”.
Notas.
1.  Ser e Tempo, 2 vols. Editora Vozes, Petrópolis, 1996.
*A palestra de Vattimo em língua portuguesa  foi publicada em: VATTIMO, Gianni. A Tentação do Realismo. Rio de Janeiro: Lacerda; Ed. Istituto Italiano di Cultura, 2001. Tradução de Reginaldo Di Piero.