sábado, 28 de janeiro de 2012

EÇA DE QUEIRÓZ



A PROPÓSITO DA DOUTRINA DE MONROE E DO NATIVISMO
Venezuela deve ter atingido, neste momento, o ponto supremo da sua felicidade nacional – se
é certo que a nação reproduz sempre, colectivamente e com intensa magnitude, as virtudes e
os defeitos do indivíduo. O homem de Venezuela, como geralmente os homens das repúblicas
latinas que cercam o golfo do México (se é que eles conservam as naturezas que lhes
conheci), tem o apetite constante e infartável do brilho, da publicidade, da nomeada, da
importância ruidosa e que reluza. (Talvez por isso eles se carregam tão profusamente de jóias
– para faiscarem ao longe.)
Este prurido de gloríola, de carácter mórbido, constitui uma verdadeira inflamação aguda da
personalidade. E uma herança do velho sangue espanhol, apesar de tão adelgaçado e aguadohoje nas veias por onde corre. Ainda por isso, as vezes, leva ao heroísmo; mas quase sempre
pára no alarde e na farófia. Transportado para a Europa, onde a expansão da personalidade é
mais difícil porque há menos espaço social, esse prurido toma aquele feitio a que os
Franceses deram o curioso nome de «rastaquerismo». De resto, o «rastaquerismo» não é uma
especialidade exótica do Americano da costa do Pacífico e do golfo do México, porque o
Francês, e sobretudo o Parisiense, também o cultiva largamente e com estridor. E o
rastaquère nascido em Paris e no Bulevar é mesmo infinitamente mais desagradável que o
rastaquère importado de Guatemala ou do Peru, porque neste há um simpático fundo de
ingenuidade, e no outro só se encontra secura e perversão.
Em todo o caso, esta fome canina da celebridade dá gozos excepcionalmente fortes àquele
que a satisfaz. Não é fácil calcular, pela tabela de medidas de que dispõe a civilização, a
alegria colossal de um crioulo, cujo o nome e pessoa e feitos consigam um dia ocupar a página
culta de um jornal da Europa. Se ele alcança a glória superior do telegrama, então a sua
felicidade só poderá ser comparada à de um santo que, ao fim de penosos anos de penitência
e de ermo, veja escancaradas diante dos seus passos as portas refulgentes da bemaventurança... Ora, Venezuela (se é que a nação reproduz o indivíduo) está hoje saboreando
com indizíveis delícias este triunfo inesperado. Não só vem nos jornais de toda a Europa, não
só vem nos telegramas de todas as agências – mas, por causa dela, duas altas nações do
mundo estão em áspero conflito, e a diplomacia hesita esgazeada, e as bolsas cambaleiam
tomadas de pânico, e pelos ares passa, com o seu costumado ruído de ferro e dor, a velha
Belona, deusa da guerra!
Não há, na história moderna, mais curioso conflito do que este que surge entre a Inglaterra e
os Estados Unidos da América do Norte por causa de algumas milhas de terra perdidas no
fundo da Venezuela. É certo que dentro desse bocado de terra existem minas de ouro – e
onde aparece o ouro, o terrível ouro, imediatamente os homens em redor se entreolham com
rancor e levam as mãos às facas. Foi por causa de umas imaginadas minas de ouro que a
Inglaterra tão vorazmente tentou arrancar a Portugal o território de Manica, em África. Por fim,
em Manica não havia ouro – porque já os diligentes Fenícios, há três mil anos, o tinham
extraído e fundido com ele ídolos e alfaias para os colégios sacerdotais de Cartago e de Tiro.
Os bons Ingleses, nessas minas vazias, só encontraram cacos, vasos de barro e ferramentas
roídas por uma secular ferrugem, sobre as quais passaram logo, com mal disfarçada
melancolia, a escrever dissertações eruditas para a Revista de Edimburgo. Porque tão forte é
esta raça que até transforma em proveitos da ciência os desapontamentos que, por vezes,
encontra no exercício da rapina. Nessas minas, porém, de Venezuela afiançam os
exploradores ingleses e americanos que ainda resta ouro, muito e delicioso ouro, porque os
Astecas justamente tinham aí os seus jazigos mais ricos e fundos. Eu desconfio desse ouro.
Os Astecas segundo as últimas revelações das ciências etnológicas, descendem dos Fenícios,
que nas suas esguias trirremes e olhando a pálida Estrela Polar, navegaram todos os mares,
aportaram a todas as costas, tiveram Gamas e Colombos mais de dois mil anos antes das
nações ibéricas, e conheceram realmente o mundo quase tão bem como o velho Eliseu
Réclus. Ora, se os Fenícios, esses formidáveis esgravatadores de ouro e de metais preciosos,
estiveram jamais nas regiões de Venezuela, receio bem que não se encontre nelas, como não
se encontrou em Manica, ouro bastante para cunhar uma libra falsa.
Em todo o caso a auri sacra fames (a «maldita fome do ouro», ou a «sagrada fome do ouro»,
segundo a tradução mais ou menos psicológica que se fizer do versículo) não constitui senão
um factor subalterno desta brusca dissidência anglo-americana. Os dois fortes irmãos estão
em cólera, quase estão em guerra, com fins mais nobres, por causa de uma doutrina – por
causa da tão falada e tão incompreendida doutrina de Monroe. Seria, pois, essa uma guerra
(se a houvesse) originada num ponto de casuística política. Amplo e legítimo orgulho para
todos os legistas e todos os fazedores de sociologias. Já havia séculos que os homens,
materializados, se não batiam por divergirem na interpretação de um ditame. Agora, ao menos,
alvorece sobre nós a doce e feroz esperança de que se alague de sangue e se cubra de ruínas
um certo parágrafo obscuro e tortuoso do tratado de direito internacional.
Oh!, esta doutrina de Monroe! Que estranha evolução ela sofreu desde que saiu, tãogravemente formulada, dos lábios do presidente Monroe, até se tornar esse aforismo oco e
mal-avisado que hoje todo o ianque (e à imitação dele todo o homem da América) lança com
tanta inconsideração e arrogância.
A América para os Americanos! Nesta fórmula, que é doutrinalmente incompreensível, e
praticamente cheia de perigos, se converteu a prudente doutrina do presidente Monroe, no
curto espaço de oitenta anos e através de uma civilização cujo objecto mais constante tem sido
a fusão e a confraternização dos homens!
Começa por ser singularmente errada esta expressão doutrina, aplicada à declaração muito
simples e muito prática que o presidente Monroe fez na sua mensagem ao Congresso de
Washington, em Dezembro do já muito remoto ano de 1823. Monroe era um homem medíocre
e limitado, totalmente incapaz de conceber e desenvolver uma doutrina política – e só pensava
ou falava sob o bafo e inspiração do seu secretário de Estado, Quincy Adams. Foi este fino e
forte estadista, hoje esquecido no pó desinteressante dos arquivos americanos, que ideou e
redigiu essas frases famosas da mensagem de 1823; mas foi o feliz Monroe que penetrou na
posteridade, trazendo bem alta nas mãos, como Moisés ao descer do Sinai, a tábua com a sua
doutrina. Assim ficou este homem insípido e nulo com a singular glória de ter traçado o forte
programa político que conduziria a América aos seus altos destinos, e de ser o Sólon ianque.
Muito bem me recordo de ver, nos Estados Unidos, um busto dele, com a coroa de louro e
hera, a coroa profética que compete aos grandes legisladores de povos. E esta coroa era tanto
mais divertida quanto sucede à sua doutrina o que sucede a outras obras consagradas – que
toda a gente a cita, e ninguém jamais a leu.
E todavia essa doutrina (para lhe conservar a aparatosa alcunha), quando se lê, parece
excelente – e foi realmente excelente dentro do momento histórico que a originou. Era então o
devoto e bourbónico ano de 1823, e a Europa estava nos grandes dias de Metternich e da
Santa Aliança. Tão radicalmente mudou a face política, moral e social do mundo, que o
conhecimento íntimo desta famosa Aliança, que a si própria se chamava e se considerava
santa, pertence quase exclusivamente à erudição histórica. Não a caluniamos decerto dizendo
que ela foi uma aliança dos reis contra os povos. Nascida no Congresso de Verona, depois da
queda de Napoleão e sob o medo pânico que inspirava ainda a Revolução (de que Bonaparte
fora uma encenação agressiva sob a forma cesariana), a Santa Aliança partiu de um princípio
inteiramente novo, desconhecido no século XVIII, e mesmo no século XVII durante o grande
prestígio das monarquias. Segundo esse princípio, os reis formavam uma família superior e
única, com interesses dinásticos e majestáticos muito diferentes dos interesses dos povos: e
portanto deviam coligar-se e manter entre si uma harmonia imutável, para poderem livre e
seguramente sufocar todo o espírito de liberdade e de revolução em qualquer povo que ele se
produzisse, e defenderem assim colectivamente os seus direitos sacros de dinastia e
majestade. Esta aliança, de que Matternich, primeiro-ministro da Áustria, era a alma motriz,
funcionou com brilho até 1830: e foi em obediência ao santo princípio donde se originara que
os reis, santamente aliados, mandaram um exército austríaco sustentar o rei de Nápoles
destronado pela revolução constitucional do general Pepe e depois um exército francês libertar
o rei de Espanha, que se achava coagido pela revolução de Riego, forçado aos sacrifícios mais
pungentes, até a expulsar os jesuítas, até a abolir a Inquisição! Tendo deste modo esmagado
gloriosamente os primeiros rebentos liberais no Piemonte e em Nápoles e restituído à Espanha
os pitorescos benefícios de Fernando VII, da Inquisição e da forca, a Santa Aliança declarou, à
maneira de uma intimação final aos povos, que ela desde então e para sempre considerava
«como nula e desautorizada pela lei pública da Europa qualquer pretendida reforma efectuada
por meio da revolta e da força popular; e que se arrogava o imprescritível e sagrado direito de
tomar uma atitude hostil contra qualquer nação que, em qualquer parte do mundo, ou sob
qualquer forma, derrubasse o seu legítimo governo e desse assim um pernicioso exemplo de
rebelião e infidelidade social aos súbditos dos reis aliados...» Ora, havia então uma parte do
mundo que estava dando esse escandaloso exemplo, e onde cada ano um povo se erguia
batendo ignominiosamente e expulsando com irrisão o seu venerável e legítimo governo. Era a
América. Por toda a sua costa, do Atlântico ou do Pacífico, não se viam senão vice-reis
espanhóis, fugindo com os baús de couro carregados de uniformes e de dobrões, para bordo
de velhas naus que viravam cabisbaixamente as proas para a Espanha. Uma a uma todas as
colónias, aproveitando as guerras de doutrina política que assolavam a mãe-pátria, se iam
emancipando dela e dando começo a essa bela pândega anárquica em que se têm deliciadohá setenta anos, entre muita gritaria, muita poeira e muito sangue. Em 1803 foi a Venezuela,
que sacudira as «algemas espanholas»; depois, já em tempo da Santa Aliança, tinham sido
Guatemala e o Peru – e esta ingratidão do Peru amargurou mais penosamente do que as
outras o coração paternal de Fernando VII, que dele esperava sempre, por tradição, uma fonte
de riqueza perene e fácil. Tais emancipações constituíam esses actos de «rebelião e força
popular», tão soberanamente condenados pela Santa Aliança. Para os anular e os governos
que deles tinham saído (governos viciosos e falsos, pois que se baseavam sobre o vício e a
falsidade da soberania nacional) é que a Santa Aliança se criara e se armara, sob o olhar
aprovador de Deus, amigo particular da Casa de Áustria. Por isso a Santa Aliança, apenas
acabou de consertar os negócios de Fernando VII em Espanha, e de aferrolhar os liberais nas
prisões do Santo Ofício e nos presídios de África, começou a pensar em lhe consertar também
os negócios na América espanhola, e em lhe reduzir de novo as novas colónias a uma sujeição
filial, redourando assim o necessário prestígio dos Bourbons, e dando simultaneamente uma
ríspida lição aos povos que se quisessem abandonar à desleal quimera da liberdade. Com tão
santos intuitos se reuniu o Congresso de Verona, onde se deviam assentar as bases de uma
acção entre todas as potências aliadas, para o extermínio dessas abomináveis repúblicas
latinas, formadas com os pedaços partidos do Império Espanhol.
Foi então perante esta possível invasão da América espanhola republicanizada que se
levantou pesadamente a voz deselegante, mas justa, do presidente Monroe. A situação dos
Estados Unidos era com efeito difícil. Todas as colónias espanholas tinham apenas imitado o
exemplo revolucionário da colónia inglesa – e cada uma aclamava o seu pequeno Washington.
As constituições políticas com que se tinham dotado eram traduzidas da constituição dos
Estados Unidos – e assim concorriam para dar a todo o continente uma vasta harmonia política
e económica. Por virtude dessas rebeliões, o solo da América ficara limpo de todas as máculas
do absolutismo; e do rio da Prata ao rio de S. Lourenço não havia já, felizmente, nem um
penacho de vice-rei, nem uma roupeta de jesuíta, nem um cárcere de Inquisição.
Podiam, pois, os Estados Unidos consentir que uma frota aliada, com pavilhão apostólico,
viesse desmanchar esta obra de liberdade e mesmo de civilização de que ela fora a
inspiradora e a mestra? E a condenação, pela Europa, dessa soberania que os crioulos
espanhóis se tinham legitimamente arrogado não era a condenação injusta e implícita do
direito com que os Estados Unidos tinham sacudido o domínio inglês? A opinião, em toda a
América do Norte, foi logo rancorosamente hostil a qualquer acção da Santa Aliança contra as
novas repúblicas latinas, ainda fracas e convalescentes da causa espanhola. E o presidente
Monroe não fez mais, na sua famosa mensagem de Dezembro, do que traduzir este pronto e
vivo sentimento da nação. Não houve aí pois uma doutrina nova, saída como uma Minerva
armada da sua cabeça, que certamente não era olímpica. Monroe apenas formulou
oficialmente a vontade íntima e popular dos estados. E deu mesmo à sua fórmula o tom mais
discreto e mais modesto. Nesses tempos distantes os Estados Unidos ainda não tinham
adoptado, nos seus modos políticos, essa arrogância estridente a que os Ingleses chamam
estilo de águia desfraldada.
Monroe, falando à Santa Aliança, não esquece que ela se compõe de reis da Casa de Bourbon
e da Casa de Habsburgo. E na sua mensagem, através da firmeza que dá à consciência do
direito, há um agradável vislumbre da antiga polidez colonial. «A nossa política para com a
Europa (diz ele nessa mensagem tão famosa) consiste em não intervir nunca nos negócios
internos dás potências; considerar como legítimos todos os governos de facto, manter com
eles relações cordiais, conservando uma atitude franca e viril, sem recusar nunca as
reclamações justas e sem nunca nos submeter a ofensas ou injustiças... Enquanto porém ao
continente da América, as circunstâncias são eminentemente e conspicuamente diferentes. E
possível que as potências aliadas estendam e transportem os seus sistemas políticos para
este continente, sem grave risco da nossa paz e da nossa felicidade: nem é fácil de acreditar
que os nossos irmãos do Sul, abandonados à sua inspiração, adoptassem semelhantes
sistemas. E portanto perfeitamente impossível que nós víssemos com indiferença qualquer
intervenção, e sob qualquer forma, das potências aliadas...»
Tais são as recatadas palavras que constituem aquilo que tão pomposamente se chama hoje a
doutrina de Monroe. Que elas são justas e práticas e que em 1823, nas vésperas do
Congresso de Verona, se tinham tornado grandemente necessárias, ninguém o pode negar,
desde que conheça a história do domínio espanhol na América e o espírito arcaicamenteabsolutista do metternichismo e da Santa Aliança: mas e também inegável que esta
declaração política está rigorosamente limitada pela sua própria data, nada significa fora do
momento histórico que a originou e só poderia ser desenterrada dos arquivos e reaplicada se
as potências da Europa se coligassem de novo para arvorar a bandeira apostólica e tentar na
América o restabelecimento de sistemas obsoletos, que elas próprias já arremessaram para o
lixo do passado... E notemos ainda que a declaração de Monroe, nem ao menos no momento
em que se produziu, em 1823, teve eficácia – pois não foi ela nem o sentimento dos Estados
Unidos, de que era a expressão, que atemorizaram a Santa Aliança e a impediram de repelir
para além do Atlântico as façanhas restauradoras de Espanha e de Nápoles, reintegrando o
bom do Fernando VII na posse aurífera da sua Venezuela, do seu México, do seu Peru. Não!
O que deteve a Santa Aliança foi simplesmente a atitude da Inglaterra, que protegeu as tenras
repúblicas da América do Sul, as reconheceu logo como governos legítimos – com o vivo
mercantil receio de que a restauração da política da Espanha no Novo Mundo fosse (como
fatalmente seria) a restauração paralela do seu sistema económico, que excluía dos portos
coloniais todo o tráfico, produção e indústria ingleses. A mensagem do presidente Monroe era
um decreto-protesto, desacompanhado de força; e a Santa Aliança podia bem impunemente
encolher os seus reais ombros e mandar vogar as suas frotas, levando já vice-reis e
inquisidores-mores, envernizados de fresco e com garrotes novos. Mas a oposição da
Inglaterra era um obstáculo absoluto, porque em 1823 todas as esquadras juntas da Santa
Aliança e as do mundo todo não podiam arriscar sequer a ponta das suas proas fora dos
portos onde se abrigavam sem permissão da Inglaterra, já então, e mais que hoje, senhora
soberana dos mares.
Pois foi desta frase do presidente Monroe, já platónica e estéril em 1823, que os ianques, com
o natural orgulho de quem sente cada dia surdirem em si forças novas, e com a ambição de
passarem perante o mundo como criadores únicos da sua grandeza, e ainda também com
esse surdo despeito que os povos coloniais conservam contra os seus antigos dominadores,
cuja civilização mais requintada, por ser mais velha e complexa, eles nunca podem igualar na
sua beleza, estabilidade e brilho histórico – extraíram essa singular fórmula da América para
os Americanos! O que significa (se eu não interpreto mal o sentimento que inspirou a fórmula)
que a América, sendo uma obra exclusiva da raça americana, só pertence à raça americana, e
só pela raça americana pode ser explorada e gozada.
Ora, dos dois termos que ela encerra logo um me parece fictício e não existente: porque se
todos sabemos muito toleravelmente, aprovados no atlas, o que é e onde está a América, não
se percebe tão facilmente o que seja e onde esteja a raça americana. Certamente existiu (e
ainda existem dela restos dizimados e perseguidos) uma verdadeira raça americana, que todos
os compêndios de etnologia escrevem, e que se compunha amontoadamente dos Tinehs, dos
Algonquins, dos Iroqueses, dos Apalaches, dos Astecas, dos Incas, dos Caraíbas, dos
Guaranis e de toda a gigantesca gente patagónia. Esses sem dúvida, ou fossem bascos, ou
indígenas da África setentrional, ou homens do Extremo Oriente, ou tivessem ido através do
submerso continente da Atlântida, ou tivessem subido pela Alta Sibéria e penetrado pelo
estreito de Bering, esses eram os legítimos donos da América, cujos desertos povoaram e
onde estabeleceram civilizações primitivas e originais, que iam desde a tribo caçadora até às
cidades dos Astecas cheias de templos e de artes. Mas não é decerto para esses que os
compatriotas do presidente Monroe reclamam o domínio e o gozo exclusivo da América – pois
que esses (também por uma estranha aplicação da doutrina de Monroe) são perseguidos,
exterminados, como animais que, pela sua própria animalidade, maculam o esplendor da
civilização americana e ocupam no solo, com as suas pobres choças, um espaço que pertence
ao civilizado e aos seus prédios de dezasseis andares. Fora desses, porém, hoje raros, tão
raros que só constituem uma curiosidade etnológica e como que pertencem já ao bricabraque
humano, eu, na América, só vejo uma raça, que é a europeia, nas grandes famílias em que a
geografia e a história moderna a dividiu – os Saxónicos, os Germânicos, os Escandinavos, os
Franceses, os Italianos, os Espanhóis, os Portugueses... Em todo o vasto continente
americano não há uma cidade, um centro activo, onde exista, se possa descobrir um único
americano. Em Nova Iorque, onde se agitam dois milhões de homens que são irlandeses, ou
ingleses, ou escoceses, ou alemães, ou suecos, ou franceses, ou italianos, ou russos, ou
espanhóis, ou portugueses, é fácil ainda encontrar chineses, japoneses, hindus, tártaros,
persas, marroquinos, árabes do deserto, negros dos mais negros fundos de África: mas é
impossível descortinar um homem, que, no puro sentido etnológico, seja um americano.Para se ver este espécime venerável dos velhos senhores do solo é necessário empreender
uma viagem, passar para além de Omaha, para além do território do Nebrasca, para além do
país dos búfalos; e aí será possível, em torno a alguma estação do caminho de ferro do
Pacífico, avistar um americano, cor de cobre, de longas guedelhas corredias, mirrado e
embrutecido, que pede esmola e se coça por entre os farrapos da camisa e das pantalonas
recebidas, pelo Natal, na grande distribuição, como esmola do alto pai, do grande chefe
branco que está em Washington.
Ora, sendo estes realmente os únicos puros americanos, a grande máxima política tem de ser
interpretada deste outro modo, mais coerente e mais franco: «A América pertence
exclusivamente aos europeus que nasceram na América. E este o seu verídico sentido. E dele
provém a doutrina ruidosa do nativismo.
Não há todavia nenhuma originalidade nesta doutrina do nativismo. Nem ela nasceu na
América. Mais de dois mil anos certamente são passados desde que a China a concebeu e a
praticou. O nativismo é, com efeito, um produto chinês, adoptado durante algum tempo pelo
Japão, depois por ele abandonado como caduco e caturra, e agora posto, com grande alarido,
em circulação pelos povos americanos.
Foi durante a dinastia dos Tsin e reinando o imperador Huang-Ti que apareceu na China e se
apoderou dos espíritos este princípio novo do nativismo. Esse imperador Huang-Ti era um
bandido, de ilimitado orgulho, ignorante e falso, que alterou toda a constituição política da
China, delapidou as finanças, inventou uma religião grotesca em que confusamente entravam
a humanidade e três espíritos que habitam numa ilha, cometeu o sacrilégio de reformar o
calendário, perseguiu os poetas e os eruditos e queimou todos os livros sagrados da China. (O
que prova que as ideias extravagantes nascem sobretudo nos tempos de anarquia e de
decadência moral.)
Somente os Chineses puseram na aplicação deste princípio, imposto por um tirano fantasista,
aquela coerência forte e rigor que sempre os caracteriza na prática das suas instituições.
Desde que o escandaloso Huang-Ti e os seus mandarins (entre os quais dominava um certo
Liseu, meio letrado e meio feiticeiro) conceberam a ideia de que o uso da China devia ser
vedado a todos os que não fossem nativos – fecharam a China, fecharam materialmente toda
a China do lado da terra com a Grande Muralha, e do lado do mar, nas embocaduras dos rios,
com fortes correntes de bronze e hediondos dragões de madeira pintada. Depois, assim
enclausurados na sua China como uma imensa e silenciosa cidadela, o mundo nunca mais
soube deles e quase perdeu a noção da sua existência entre as gentes. De resto, durante os
seguintes séculos, se, apesar de todas essas correntes e muralhas, algum estranho penetrava
na China por motivos espirituais ou temporais, logo uma populaça nativista corria sobre ele
com bambus e cutelos, e do intruso abominável só restava em breve uma massa roída e
retalhada em cima de um charco de sangue. Os Japoneses, mais doces e de natureza céptica,
nunca se abandonaram a estas ferocidades nativistas, e quando muito corriam o estrangeiro à
pedrada, pelas ruas, até ao batel de que ele desembarcara. E na América, ainda mais doce e
mais polida, o nativismo todo se limita a uns gritos nos jornais – e o intruso é meramente
corrido a adjectivos. Assim, as ideias fortes, na sua costumada marcha de oriente para
ocidente, se enervam e se amolecem.
Considerando, porém, com seriedade, e sem desejos de sorrir, esse curioso fenómeno do
nativismo chinês, muito facilmente se lhe encontra justificação e até grandeza. Os Chineses
não são somente os primitivos senhores da China, mas são os primitivos e únicos criadores da
sua civilização, que é só deles, bem original e bem própria, sem mistura de ideia ou forma
alheia. Foram eles, só eles, que tiraram da sua razão, do seu sentimento e da sua fantasia
tudo o que temporalmente e espiritualmente constitui a China, a sua organização política, a
sua religião, a sua moral, o seu direito, a sua agricultura, a sua indústria, a sua literatura, a sua
arte, os seus cerimoniais, as suas armas, os seus trajes... Toda a China é absolutamente e
unicamente de invenção chinesa. Não há ideia ou costume, nem mesmo uma pequena regra
de etiqueta, nem mesmo uma ligeira forma de vaso, que fosse importada do mundo exterior,
que para eles é bárbaro, e que fica para além da Grande Muralha e do mar Amarelo. E tão
intensamente homogénea é esta civilização que qualquer ideia ou costume que chegue de fora
e consiga cair nesse compacto fundo de costumes e de ideias não se funde, não penetra na
circulação da vida ambiente: fica enquistada, no lugar onde pousou, como um caroço estéril, eem breve se mirra e se desfaz. E pelo mesmo motivo, para onde quer que emigre (agora que
emigra) o Chinês instala uma pequena China, onde vive de uma existência só chinesa, tendo
já ao lado um esquife chinês para que, apenas morto, o reconduzam dentro dele à grande
China.
Dada pois esta absoluta originalidade e homogeneidade da sua civilização, o nativismo chinês
é lógico e legítimo. O Chinês prova soberbamente que, para construir uma civilização
completa, toda inteira, desde as bases da moral até ao feitio dos sapatos, e solidamente
estável (a mais estável que conhece a história), não lhe foi necessário importar um único
princípio, um único utensílio, uma única forma linear – e portanto muito justamente pensa que
o homem alheio à China, o estrangeiro (que era um selvagem quando ele já exercia todas as
artes) não tem direito a gozar e a partilhar os benefícios de uma obra que nada lhe custou,
nem a ele nem aos seus, e para a qual não contribuiu com nenhum elemento fundamental nem
mesmo com nenhum retoque que a embelezasse. Por outro lado, essa civilização, que só ele
concebeu, tanta felicidade lhe dá (para o Chinês, como todos os moralistas e poetas afirmam,
não há ventura mais certa na Terra do que nascer e ser chinês) que não pode admitir que o
estrangeiro venha, com as suas ideias, e as suas crenças, e os seus métodos desmanchar a
harmonia da sua ordem social, macular-lhe talvez a pureza, abalar-lhe talvez a solidez e
comprometer portanto essa imensa felicidade que nela encontram há mais de quatro mil anos
mais de quatrocentos milhões de homens. O sentimento dos Chineses realmente equivale ao
que seria o nosso, na Europa, se os Amarelos viessem, com missionários, com empreiteiros,
com letrados, com artífices, instar, fazer propaganda para que nós usássemos rabicho,
habitássemos casas de bambu e papel e viajássemos em liteiras de machos, só lêssemos o
livro dos Deveres Filiais e queimássemos cada manhã um rolo de cera perfumada em louvor
de Confúcio. Como a Europa então soltaria o grito unânime e feroz de supremo nativismo:
«Fora os Chineses!»
A Europa é para os Europeus! De resto, esse grito rancoroso já o brama sem cessar a
Califórnia, contra os pobres celestiais que vêm trabalhar a S. Francisco, e sem que eles
intrusivamente missionem as suas ideias ou os seus costumes (como nós fazemos na China),
e só porque no meio da cidade branca, de raça saxónica irisada de espanhola, faz uma
mancha irritante aquela colónia amarela, de cabaia e de rabicho, que cheira adocicadamente a
ópio.
Mas se o nativismo chinês, fundado na originalidade e intransigência da sua civilização, é
claramente compreensível – quem pode compreender o nativismo americano e a pretensão
estranha de excluir a Europa do uso e gozo de uma América que a Europa fez, com o esforço
do seu génio, e que todos os dias, incessantemente, continua fazendo como a sua obra mais
querida. Todos os dias! Pois, como disse com fina profundidade um humorista inglês, o que a
Inglaterra sobretudo exporta para os Estados Unidos é os próprios Estados Unidos. Com
efeito, de cada porto da Europa, em cada paquete, vão Estados Unidos para os Estados
Unidos (assim como vai Brasil para o Brasil) – vão os homens, e vão as ideias, e os obreiros, e
vão os materiais com que se erguem civilizações. E cada semana, por cada paquete, a
América recebe um bocado de si mesma, com que se vai robustecendo e com que se vai
alargando. De norte a sul, não há em todo o continente americano (com excepção dos
toucados de penas dos índios) um único princípio, um único costume, uma única forma que
fosse originariamente inventada na América. Tudo foi aqui concebido por nós e por nós
experimentado num prodigioso labor de séculos. Os Chineses criaram a sua religião, o seu
direito, a sua moral, a sua filosofia, a sua arquitectura, o seu alfabeto. Mas a arquitectura, a
moral, os códigos, os dogmas usados na América, todas as instituições fundamentais da sua
sociedade, são a obra magnífica de alguns europeus que nunca conheceram a América. As
línguas em que a América proclama os princípios do seu nativismo foram pela Europa
inventadas e polidas. A própria tinta com que imprimem os jornais em que nos acusam de
intrusos fomos nós que a imaginámos e remexemos. E se os Europeus nunca tivessem
fabricado sapatos, – ainda as finas damas de Nova Iorque andavam descalças!
Os elementos primordiais desta civilização foram levados, é certo, para a América pelos
primeiros europeus nas primeiras naus. Mas depois desses dias imprudentes de Colombo, de
Cabral, de Magalhães, de Balboa, de Grijalva, quase quatrocentos anos são passados. Neste
comprido espaço de história os Americanos, estabelecidos no seu continente, tendo fixado as
divisões geográficas, tendo experimentado as terras aráveis, com o habitat e o pão seguros,bem poderiam ter desenvolvido esses elementos e completado uma civilização sua, própria,
adaptada ao seu clima, à sua natureza, às necessidades novas das raças fundidas. Mas não!
Essa América, que tanto se ufana de génio inventivo, nada inventou nestes últimos trezentos
anos, que têm sido os mais fecundamente activos da humanidade. E fomos nós, aqui nesta
esfalfada Europa, que, suando e gemendo, continuámos a espantosa tarefa da civilização,
descobrindo as leis universais, criando as ciências naturais, construindo os sistemas de
filosofia, apurando a beleza das artes, fundando indústrias, dando ao mundo a imprensa, a
electricidade, o gás, o vapor, os teares, os telégrafos, milhões de livros, toda a sorte de
ideias!... E desses benefícios inumeráveis recebidos pelas naus da carreira, logo a boa
América se utilizava e gozava, conspirando já, surdamente, contra a nossa supremacia. O
motivo que ela invocava para esta sua soturna abstenção na obra humana do progresso era
que o génio estava sufocado sob a dureza do regime colonial. Vieram as independências,
findaram os regimes coloniais – e a América continuou unicamente a viver à custa intelectual
da Europa. Em mais de um século de independência, esses próprios Estados Unidos, que se
proclamam o povo iniciador da América, não têm con-corrido para a obra da civilização do
mundo com uma ideia nova, nem com uma forma nova. Quando muito, fazem aplicações
subalternas e complicadas dos nossos princípios originais. A sua única invenção é talvez o
telefone – que, se não fosse emendado e refundido pelos mecânicos ingleses, ainda hoje
permaneceria um aparelho grotesco e radicalmente inútil.
Ora, é esta América, a quem a Europa forneceu todos os elementos essenciais para ela existir
socialmente, e politicamente, e intelectualmente, e industrialmente, que agora grita à Europa
com soberano desplante: «Fora deste continente, que é nosso e que nós fizemos! A América é
exclusivamente para os Americanos! Nós não queremos cá nem a vossa influência, nem a
vossa actividade, nem quase a vossa presença!» É grave. E há aqui certamente uma
escandalosa ingratidão. Porque, se Europeus e Americanos definitivamente se desquitassem e
cada um recolhesse aquilo que é obra lenta do seu génio, os Americanos ficariam subitamente
sem religião, sem leis, sem moral, sem ciência, sem artes, sem indústrias, sem costumes, sem
tudo o que constitui a vida superior de um povo, e seriam apenas uns selvagens louros, uns
«peles-brancas», absolutamente iguais aos peles-vermelhas que eles consideram uma
mancha na civilização do continente e que por isso perseguem a tiro, como os ursos e como
os búfalos.
Não! Só é legitimamente admissível o nativismo num povo que, como o Chinês, tenha
originalmente concebido e realizado a sua civilização e que não quer portanto que o
estrangeiro, introduzindo nela princípios e formas heterogéneos, lhes desmanche a beleza e a
utilidade. Uma Muralha da China é então uma construção perfeitamente racional. Um tal povo
já soberbamente provou que a si próprio se basta e se completa, e que, na ordem espiritual e
na ordem material, é independente de todos, não sendo, pela força experimentada das suas
instituições, inferior a nenhum.
O seu nativismo representa então a justa e necessária defesa dessas instituições, onde
encontrou felicidade e estabilidade. Mas entre povos de civilizações idênticas, e dos quais um,
o nativista, tudo recebeu do outro, desde os dogmas até às ferramentas, o nativismo é
simplesmente o medo egoísta da concorrência. E de que pode provir esse medo? Unicamente
do sentimento da própria inferioridade.
E eis aí porque eu não compreendo o nativismo em povos tão orgulhosos como os povos
americanos – pois que dele resulta meramente que o homem da América se declara em altos
brados, e ante o mundo, inferior ao homem da Europa.
O que significa realmente o Americano proclamando nos seus jornais ou nos seus parlamentos
que aquele seu bocado da América é só para ele e que não quer lá, nem a influência, nem a
actividade, nem mesmo a presença do Europeu? Significa no fundo simplesmente esta
confissão bem humilhante: «Eu sou indolente, o Europeu é laborioso; eu sou obtuso, o
Europeu é inteligente; eu sou fraco, o Europeu é forte... Se o Europeu aqui entra, eu, na luta e
concorrência da vida, sou indubitavelmente vencido! Portanto ergamos contra o Europeu uma
grande muralha, à boa moda da velha China! Oh, Americano, meu valente, como podes tu,
sem corar, fazer uma confissão de fraqueza? E depois considera que se tu próprio te declaras
inferior ao Europeu em actividade, inte-ligência e força – implicitamente reconheces que o
Europeu, possuindo qualidades superiores às tuas, poderá muito melhor que tu explorar,valorizar, civilizar, para bem geral da humanidade, esse pedaço de América de que tu és o
dono geográfico. Os interesses superiores da humanidade reclamariam, portanto, que esse
bocado de terra te fosse expropriado, e que outros (que tu próprio reconheces como mais
fortes e mais hábeis) fossem aí criar a obra de civilização, que tu, com as mãos contritas sobre
o peito, te confessas impotente para fundar.
E se insistisses na tua muralha, não deverias estranhar que os outros a atacassem em nome
desses altos interesses humanos, e fundados nas confissões de inferioridade intelectual e
física – que tu fizeste, tão transparentemente, quando pregavas o teu nativismo com um
ímpeto que era todo feito de abdicação!
Nativismo! Quem pode conceber a Inglaterra, ou a França, ou a Alemanha, ou nações onde
haja um pensamento e um braço, pregando o nativismo, e regateando a qualquer homem o
direito de vir para o meio delas labutar na obra humana? De resto não existem, na realidade,
povos nativistas. O que existe em cada povo é um certo número de nativos que, por falta de
qualidades activas, destras e rijas, sucumbem e murcham naquelas mesmas carreiras em que
outros, que não são nativos, prosperam e florescem.
É o lojista que tem de fechar a loja deserta, enquanto ao lado o lojista estrangeiro alarga a sua,
onde a multidão se apinha. É o escritor que vê os livros estrangeiros vendidos, discutidos,
envolvidos na vida intelectual, enquanto os seus ao fundo dos armazéns apodrecem, no
silêncio, na escuridão e no pó das obras mortas. É o arquitecto a que nem o Estado, nem os
particulares confiaram a construção de um muro de quintal, e que assiste aos triunfos do
arquitecto estrangeiro, encarregado de cobrir a cidade de casas e monumentos. E o médico
sem doentes que por trás dos vidros, roendo som-briamente as unhas, conta a longa fila de
clientes que enfia para dentro da porta do seu vizinho, o especialista estrangeiro. É sobretudo
o homem das profissões liberais, ávido de publicidade, de posição, de influência, que
permanece na obscuridade, no abandono, ao passo que o estrangeiro é acolhido, reclamado,
festejado. Estes são os verdadeiros nativistas – os que falharam em face do estrangeiro que
acertou. A ilusão e a vaidade nunca lhes consentiriam reconhecer que a sua derrota proveio da
sua insuficiência – e é como consolação interior, e mesmo como desculpa publica, que eles se
consideram e se proclamam vítimas de uma vasta calamidade social, a invasão das raças
estrangeiras, que alastra, tudo atravanca, se impõe pela brutalidade do número e pela
parcialidade do privilégio, e tiram ao pobre nativo esmagado a parte que lhe competia do pão e
do solo natal. A identidade do descontentamento faz que todos estes descontentes se juntem,
mutuamente desabafem, e se exaltem, e findem por organizar uma seita que vá pregando a
salvadora ideia nativista. E na maior parte dos casos não é com a esperança que essa ideia
triunfe, pois que eles sentem bem quanto ela é socialmente intriunfável, mas apenas com o
intuito, em parte ingénuo e em parte astuto, de encontrarem no exercício dessa estranha
profissão de nativista os proventos, a influência fácil e a posição que não souberam granjear
nas outras profissões em que a sua mediocridade foi factor da sua derrota. E esse intuito
frequentemente o logram – porque tão profunda é a credulidade emotiva das multidões que
não há bandeira nova, por mais frágil, com um mote novo por mais irracional, que, bem
desfraldada na rua, não reúna e levante uma legião. E durante esse curto momento, um bom
nativista saboreia as glórias de um chefe, de um messias. Mas também tão rápida é a reacção
do bom senso nas multidões educadas que, reconhecida a fragilidade da bandeira e a
irracionalidade do mote, a legião que se formava ao começo da rua fica reduzida, antes
mesmo que se desemboque na praça, a alguns arruaceiros e a alguns simplórios.
É esse o desagradável momento para o nativista – porque então se descobre que aquilo que
se julgara ser o movimento forte de uma nação era apenas o despeito, ou a manha, ou a ilusão
de alguns falhados.
Por isso nunca me inquietei quando, lá um ano, tanto se falava na agitação nativista do Brasil.
O Brasil nativista! Porquê?
É possível que aí, como em toda a parte, haja um outro ladino que visse no exercício do
nativismo uma profissão fácil, sem habilitações obrigatórias, sem horas presas, altamente
rendosa e mesmo divertida. (Não se tomou hoje em França o anti-semitismo uma carreira
soberba que leva a celebridade e à fortuna?) E provável também que, sobretudo no Rio, onde
a concorrência já é áspera, alguns derrotados da vida atribuam candidamente a sua derrota,
não à própria inabilidade e fraqueza, mas à força esmagadora de um fenómeno social, aonúmero invasor das raças alheias. E é quase certo ainda que muitos moços, com a
ingenuidade um pouco tumultuosa que é própria da nossa raça, confundindo nativismo com
nacionalismo, tivessem concebido o sonho de um Brasil só brasileiro. Estas ideias e
interesses, tendo um fundo idêntico de negação, sem dúvida se juntariam, atravancariam a rua
com o seu bando e a sua bandeira, e por motivo daquela excitação contagiosa, que tanto
prejudica as sociedades meridionais, encontrariam apoio, por um momento, entre multidões
crédulas e com os nervos ainda abalados por uma dura guerra civil. Mas essa influência do
nativismo só podia ser (como foi, creio eu) muito transitória, no meio de uma nação tão
amorável, tão generosa, tão hospitaleira, tão europeia e de tão vasta fraternidade como é o
Brasil, para sua grande honra entre as nações.
As repúblicas semimortas da América Central, uma Guatemala, uma Nicarágua, um Equador,
são nativistas com paixão, e o seu nativismo é compreensível – porque nelas não só abundam
os homens falhados, mas elas próprias são países falhados.
Começaram a sua carreira de nacionalidades sem para isso terem habilitações ou capitais, e
em breve caíram em tal desordem civil e em tal miséria moral que toda a inteligência, toda a
actividade, toda a força gradualmente se lhes sumiram, e hoje qualquer aventureiro que lá
entre, sendo um pouco esperto e um pouco vidente, se pode tornar num instante o seu
explorador e mesmo seu dono. Mas o Brasil, esse, nativista! Como poderia ser?
O nativismo na América espanhola é sempre sentimento invejoso de mulato que tem alma
mulata e que falhou. Ora, o Brasil é branco, de alma branca – e está, como nação, em pleno e
vivo êxito (apesar destes anos de atrapalhação política, que vem não da falta de ideias, mas
da falta de pessoal, junta a um individualismo exagerado que produz indisciplina). E nem pode
deixar de estar em êxito, sendo como é um povo superiormente inteligente, provadamente
activo e escandalosamente rico. Com tais qualidades, que inveja pode ele ter do estrangeiro e
que medo da sua concorrência? E não tem, como soberbamente o prova cada dia com a sua
magnífica franqueza hospitaleira; porque a hospitalidade não é somente um sinal de doçura, é
sobretudo um sinal de força.
E aqui está como, levado pela tagarelice godo-latina, eu me deixei da doutrina de Monroe, para
divagar através do nativismo, seu filho bastardo e petulante.
De resto, agora que ela foi bem definida num relatório parlamentar ao Senado, em
Washington, essa boa doutrina interessa menos os estados da Europa do que as nações do
continente americano – porque desde hoje ela já não constitui uma defesa contra a
preponderância da Europa na livre América, mas estabelece um verdadeiro princípio de
agressão contra a autonomia das repúblicas américo-latinas. Em virtude da antiga doutrina, tal
como ela era pregada ainda há pouco pelos patriotas de Washington, os Estados Unidos
pretendiam que nenhuma nação europeia pudesse, pela força e pela conquista, adquirir um
pedaço qualquer do continente americano, onde fossem estabelecer os seus métodos vetustos
de política e de administração.
Agora, porém, os patriotas de Washington decretam que nenhuma nação do continente
americano poderá ceder, trocar ou vender a uma nação da Europa uma parcela, mesmo
mínima, do seu território, sem o consentimento dos Estados Unidos, que nunca o darão, para
evitar que se formem sobre o limpo solo da América focos de infecção europeia! Ora o direito
de proprietário inclui necessariamente o direito de ceder, trocar, doar, vender, a totalidade ou
uma parte da sua propriedade. E este um princípio que está em todos os códigos dos
civilizados e mesmo em todo o direito costumário dos selvagens. Desde que se contesta ao
possuidor o direito de dispor da coisa possuída, implicitamente se lhe contesta a plenitude
directa da propriedade. Proprietário directo e pleno é aquele que, usufruindo a terra, tem
simultaneamente o direito de a alienar. Aquele que habita a terra, e a cultiva, e vive dos frutos
dela, mas não tem a faculdade de alienar nem uma árvore nem uma pedra é usufrutuário. não
senhorio. Se alguém, vindo de longe, lhe propõe a compra dessa pedra ou dessa árvore, o
usufrutuário nada pode resolver sem tirar respeitosamente o seu chapéu e implorar a
permissão do senhorio. Ora, os Estados Unidos pretendem, por uma votação do Congresso,
determinar que os povos do continente americano são meramente usufrutuários dos territórios
que habitam, pois que só têm direito de os fruir, não de os alienar sem consentimento – e
conjuntamente, pela mesma votação, eles se declaram senhorios directos de todo o
continente, pois que só a eles pertencerá dar ou negar esse consentimento. E uma portentosaconquista, tão portentosa e fácil que quase parece cómica. Uma tarde, de repente, no fim de
uma sessão do Congresso, o ianque surge como o dono de toda a América. Em torno já não
haveria senão nações usufrutuárias. O povo brasileiro pensa possuir o Brasil? O Brasil todo,
desde o rio Parima até ao rio Paraná, é do ianque. Ao povo brasileiro só pertence habitar o
solo, plantar nele zelosamente o seu café e estar quieto. Mas se um dia tiver a livre ideia de
vender ao Inglês ou ao Turco três metros de areal ou de senão terá de ir, com a fronte baixa,
implorar a licença do ianque, que lha recusará, rispidamente, com um vasto gesto senhorial...
E ainda há aqui moderação da parte dos Estados Unidos – porque poderiam, em vez de
declarar os povos da América simples usufrutuários, decretar que eles seriam, a partir deste
ano de 1896, meros rendeiros, devendo pagar-lhes cada semestre a renda dos territórios
fruídos, sob pena de expulsão. Os Franceses dizem, com a sua usual razão e finura, que
quand on prend du galon on n’en saurait trop prendre. Se os Estados Unidos estão em veia
forte de arrebatar propriedade, porque a não arrebatam toda e completa com os deleitáveis
benefícios da renda? Seria isso um grandioso domínio à velha moda oriental. Só povos
tributários em toda a América e lá no alto o ianque, grão-senhor! E todos os anos, então,
subiriam do Sul e do Centro lentas filas de emissários, uns sobraçando velhas carteiras
ajoujadas de papel (à falta de ouro), outros carregando fardos cheios de cacau ou de café, e
todos a caminho de Washington, a depor o tributo nos degraus do Capitólio, aos pés do
presidente dos Estados Unidos, o presidente dos presidentes, dono supremo dos homens,
como o velho Xerxes. Esse espectáculo deleitaria o coração de todos aqueles para quem a
grande fraternidade democrática da América é a mais divertida de todas as pilhérias sociais
deste século.
Na minha aldeia, no Norte de Portugal, se um lavrador que durante anos amanhou uma terra
recebe bruscamente de um cavalheiro seu vizinho a intimação de que essa leira de vinho e
pão lhe pertence por posse directa, como antigo senhorio – começa por coçar a cabeça e
comer nessa noite, à lareira, o seu caldo com mais lentidão e silêncio. De manhã, ao primeiro
sol, enverga a jaqueta e vai ao letrado, a quem escuta pensativamente e paga cinco tostões.
Depois volta ao lugar e pede, de chapéu na mão, ao cavalheiro as suas provas, os seus
papéis. O cavalheiro não tem provas – tem só a sua arrogância, o seu palacete, os seus
criados de estrebaria e monte, a sua influência na freguesia. E quer a terra! Então o lavrador
volta ao canto da lareira e agarra no cajado. E nessa tarde há, junto de qualquer sebe onde se
enrosca e rescende a madressilva, um cavalheiro com uma clavícula e três costelas
absolutamente partidas. E assim na minha pequenina aldeia. Não sei como é nessa imensa
América