sábado, 15 de agosto de 2009

A aliança



Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.

Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências... Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.

— Você não sabe o que me aconteceu!

— O quê?

— Uma coisa incrível.

— O quê?

— Contando ninguém acredita.

— Conta!

— Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?

— Não.

— Olhe.

E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.

— O que aconteceu?

E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

— Que coisa - diria a mulher, calmamente.

— Não é difícil de acreditar?

— Não. É perfeitamente possível.

— Pois é. Eu...

— SEU CRETINO!

— Meu bem...

— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.

— Mas, meu bem...

— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!

E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:

— Que fim levou a sua aliança? E ele disse:

— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.

Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.

— O mais importante é que você não mentiu pra mim.

E foi tratar do jantar.

(Do livro "As mentiras que os homens contam)
Luiz Fernando Verissimo

domingo, 2 de agosto de 2009

Uma geração de filhos únicos



Ruth de Aquino

17/05/2008 - 00:02 | Edição nº 522

O que, para nós, é repressão, os chineses enxergam como proteção.
Um dos enigmas chineses é quase invisível. Está nas ruas atulhadas, nos shoppings de luxo de Xangai, na Grande Muralha nos arredores de Pequim. É a família moderna chinesa, onde uma única criança reina num universo de seis adultos: pai, mãe, avós paternos e maternos. Não existe o filho mais velho nem o caçula, muito menos o filho do meio. A cena comum de casal com filho pequeno e um carrinho de bebê não cabe na realidade. É fora da lei. Um decreto governamental do fim da década de 70 proibiu mais de um filho por família. Deixaram de nascer 400 milhões de chineses em 30 anos, o equivalente a mais de dois Brasis. Vive na China hoje 1,3 bilhão de pessoas, 20% da população mundial.

Uma geração de filhos únicos foi criada por ordem de cima, do Partido Comunista. Bom ou ruim? Todos os brasileiros, sem exceção, a quem fiz essa pergunta na China, de diplomatas a executivos, professores e jornalistas, apóiam o planejamento familiar centralizado chinês. Os estrangeiros que vivem em Pequim e Xangai podem até achar politicamente incorreto que o Estado se sobreponha a uma decisão tão particular e emocional quanto o número de filhos que um casal sonha ter. Mas o desastre demográfico e ambiental no mundo teria proporções desconhecidas se a população chinesa continuasse crescendo aos mesmos níveis de antes.

Li Xing, editora do jornal China Daily, ironiza os que acusam seu país de violar direitos humanos ao multar e punir casais que têm mais de um filho. “Direitos humanos? Reduzindo o crescimento populacional, ajudamos não só os chineses a ter uma melhor qualidade de vida. Ajudamos o planeta. É um favor à humanidade. Deviam nos agradecer.” Faz sentido.

Escrevo este texto no vôo entre Xangai e Kunming. Nesta província, de Yunnan, a sudoeste do país, vivem mais de 30 etnias minoritárias. Quando pergunto se as famílias continuam tendo apenas um filho, as respostas variam. Os chineses ricos pagam multa e se safam, dizem uns. Os ricos nem pagam multa, dizem outros; simplesmente driblam a lei por sua influência e matriculam os filhos em escolas estrangeiras. Essas crianças não seriam aceitas em escolas chinesas, por ter irmãos. Na região rural, onde vivem 800 milhões, os camponeses que tiverem uma filha podem tentar um menino pela segunda vez. O filho homem, por tradição, é quem cuida dos pais idosos.
Por ordem de cima, os chineses só podem ter um filho. E todos no país parecem concordar

Não se tem idéia de quantos milhões de meninas foram abortadas ou abandonadas por causa da lei. Nos orfanatos, quase só existem meninas. Os meninos abandonados são deficientes mentais. Uma brasileira que vive há 40 anos na China me disse: “Nós, ocidentais, erramos quando julgamos os chineses segundo nossos valores. Eles não são cristãos. Nós os achamos cruéis. Mas eles agem de acordo com as tradições deles, na linha do pragmatismo asiático. Filho homem é sinônimo de aposentadoria garantida”.

Quem trabalha para o Partido Comunista no médio escalão não tem como escapar da proibição. Precisa dar o exemplo. Em janeiro, o Partido expulsou 500 de seus membros e 395 funcionários públicos por terem violado a lei do filho único. Teme-se o retorno aos tempos em que os chineses produziam legiões de revolucionários. Nos anos 70, a média era de 5,8 filhos por mulher. Agora, é de 1,7. O problema começa a se inverter. O governo receia o envelhecimento da população e a falta de recursos para alimentar tanta gente.

O Estado é a sociedade na China. Vozes divergentes e dissidentes quase não são ouvidas. As ordens existem para ser obedecidas. O que, para nós, é repressão, os chineses enxergam como proteção. Não existe na China nosso conceito de liberdade. A massa prefere seguir um roteiro preestabelecido. E acreditar que a economia, crescendo a 10% ao ano, vai tirar todos da pobreza.