Anno
2000.
A
população do Brasil attingiu 200 milhões
de pessoas a precisarem de energia para as suas multiplas
actividades: compreende-se como essa necessidade levou ao
aproveitamento das forças hydraulicas. Lentamente,
medrosamente, a principio, essa utilização de
energia se foi, depois, aos poucos accelerando. No anno 2000
já estão longe os tempos em que ainda se importavam
carvão e petroleo! Esses recursos primitivos, condemnados
pelo progresso da technica, foram desapparecendo, passando
a constituir apenas uma recordação historica.
Os
50 milhões de cavallos-vapor de energia hydro-electrica,
utilizados no Brasil, no anno 2000, equivalendo ao trabalho
mecanico de 600 milhões de homens, a população
brasileira, do ponto de vista energetico, é então
computavel em 800 milhões. Nessas condições,
não admira que sejam enfrentados e convenientemente
resolvidos os problemas da producção. As questões
nacionaes são, então, estudadas por gente competente,
tendo acabado, ha muito, a influencia dos politicos profissionaes.
A Natureza, dia a dia dominada, é cada vez mais perfeitamente
aproveitada. A luta do homem para o progresso passou a ser
travada especialmente nos laboratorios de pesquisa. Ahi é
que perscrutam, pacientemente, os segredos da Natureza, e
dahi é que saem os processos, cada vez mais aperfeiçoados,
de dominio da energia cosmica. Como estamos longe dos tempos
em que nem havia Universidade no Brasil, a nao ser umas instituições
de fachada, formadas por escolas exclusivamente para ensino
profissional, e onde a pesquisa scientifica não se
podia fazer!
Todas
as actividades industriaes foram avassaladas pela energia
electrica. São as industrias electro-chimicas, num
desdobramento maravilhoso; é a electro-metallurgia;
é, ainda, a energia para tudo. As distancias desappareceram,
por assim dizer, desde que se resolveu o problema de irradiação
da energia.
Lembram-se
todos como começou a ser resolvida essa questão.
Foi, a principio, a radio-telephonia, logo seguida da radio-photographia.
Pouco depois, irradiava-se energia pra fins industriaes, e
os motores electricos com energia irradiada se installaram
em todos os vehiculos: bondes, trens, automoveis, aeroplanos,
navios; e em todas as fabricas; e em todos os logares onde
a energia se faz precisa. O problema da distribuição
da energia passou, desde então, a ser uma questão
definitivamente resolvida.
Transformara-se,
com isso, a vida, que Nietzsche affirmou ser, essencialmente,
uma aspiração á maior somma de poder,
numa vontade que permanece, intima e profunda, em todo ser
vivo. A luta pela existencia, pelo poder, pela preponderancia,
com a nova forma de distribuição de energia
passara a ser uma luta pela posse da energia electrica. A
importancia dos povos se alterara, sendo regida a sua classificação
pelo valor das reservas em forças hydraulicas.
É
assim que o 1° lugar passara a ser da Africa, com os seus
190 milhões de cavallos-vapor hydro-electricos. Em
2° logar vinha a Asia, com 71 milhões. A America
do Norte, com 62 milhões, ficara em 3° logar, e
a America do Sul em 4° logar, com 60 milhoes de cavallos-vapor
hydro-electricos, dos quase 50 cabendo ao Brasil. A Europa,
com 45 milhões de cavallos, ficara tendo atrás
de si unicamente a Oceania, com 17 milhões.
Cabia
agora o dominio aos povos que dispunham de maior somma de
energia hydro-electrica. Passara o tempo do imperialismo do
carvão e do petroleo, e chegara a era da energia electrica.
Os 445 milhões de cavallos-vapor, em que se orçara
a energia total das forças hydraulicas da Terra, passaram
a regular decisivamente a importancia relativa das 5 partes
do mundo.
Ainda
ha, no anno 2000, philosophos a indagarem se o progresso existe,
affirmando que o que interessa não é poder ser
enviado o pensamento á volta da terra, em alguns segundos,
mas sim saber se esse pensamento é melhor, mais profundamente
humano, mais justo. A vida, em todo caso, mudou completamente.
Melhor? Peor? - É difficil sabe-lo. Mas, seguramente,
é differente.
É
a era da electricidade.
A
differença entre a vida de então e a dos anteriores
é alguma coisa como a differença hoje existente
entre a vida dss grandes cidades e a do campo. O ambiente
é outro. Outra é a organização
da vida. Cada vez o homem se afasta mais da Natureza. Primeiro,
liberta-se do dia e da noite. A luz artifical permitte-lhe
a vida nocturna absolutamente igual á do dia; a luz
solar não é mais reguladora dos habitos quotidianos.
A vida em grandes aglomerações vae, aos poucos,
deixando em todos os habitos a sua marca. As facilidades augmentam
para tudo e os multiplos actos da vida se vão, lentamente
mas constantemente, adaptando á nova ordem das coisas.
O tempo se distribue de outro modo, e os affazeres são
outros. Outros são, tambem, os divertimentos. Insensivelmente,
as differenças se vão accentuando.
As
viagens e os proprios passeios diminuiram muito, desde que,
sem sair de casa, pode-se ver o que ha em qualquer parte da
Terra: a televisão, juntada á telephonia, modificou
radicalmente os habitos. Não ha necessidade de sair
para fazer compras: vê-se, escolhe-se, encommenda-se
tupo pelo telephone-televisor automatico. Não ha mais
necessidade de viajar, para ver terras longinquas: é
só ligar o receptor, e visita-se, commodamente, qualquer
museu, ou qualquer paiz. Sómente os objectos devem
ser transportados.
Na
era da electricidade o rei dos metaes é o aluminio,
retirado das argilas pela energia electrica. O aluminio supplantou,
com as suas ligas, o ferro, pesado demais e facilmente oxydavel,
e ainda substitui o papel, tão facilmente deterioravel.
De aluminio são os livros. É em folhas de aluminio
que se escreve.
A
era da electricidade se caracteriza, essencialmente, pelo
emprego da electricidade em todas as formas de energia. Energia
luminosa: tudo se iluminna electricamente. Energia chimica:
tudo deriva da electricidade. Energia thermica: tudo se aquece
ou se resfria pela electricidade. Energia mecanica: tudo se
movimenta pela electricidade.
Servindo
para tudo, a energia electrica passa a ser a nova moeda. O
ouro e as suas representações são formas
obsoletas de medir valores. A moeda, no anno 2000, é,
tambem, a energia electrica. Pagam-se as compras em kilowatts.
Paga-se o trabalho en kilowatts.
A
revolução trazida é principalmente nos
habitos. Continúa a haver desigualdades sociaes. Ha
ricos, possuidores de milhões de killowatts-horas,
remediados, que têm alguns milhares de unidades de energia;
e pobres, que dispõem apenas de algumas unidades. É
verdade que não ha mais fome, desde a adopção
do trabalho obrigatorio minimo, nas usinas distribuidoras
de energia. Mas as questões sociaes continuam.
Muitos
pretendem estender o dominio da actividade industrial do Estado.
Parece-lhes insufficiente o monopolio governamental das usinas
geradoras e distribuidoras de energia. Começou a questão
a proposito da regularização do clima. Uma vez
reservada para o Estado a faculdade de provocar as chuvas
pela energia irradiada ás nuvens, determinando-lhes
a condensação, pareceu a muitos que se deveriam
ampliar ainda mais as horas de trabalho obrigatorio minimo,
servir-se-ia melhor a colectividade minima do trabalho. Só
haveria vantagens nisso.
Objectam,
porém, alguns ser o caso das usinas de energia, evidentemente,
especial. Da mesma forma, o da distribuição
das chuvas, vantajosamente affecto ás autoridades,
para beneficio geral. A Repartição das Chuvas,
dispondo de todo o serviço official de estatistica,
e em connexão com os demais repartições
do Ministerio da Agricultura, é uma organização
que se resolveu dever ser do Estado. Ampliar, porém,
ainda mais os serviços governamentaes, numa socialização
progressiva de todas as actividades, não merece as
sympathias de um grupo numeroso. Já todos os homens
e todas as mulheres, maiores de 18 annos, são obrigados
a um serviço diario de 2 horas. Breve serão
3 horas. Onde se irá para nesse caminho? Invocam-se
contra as idéias de socialização os velhos
principios da liberdade individual. A questão está,
assim, longe de ser resolvida
. . . . .
Sonho?
- Sim. Mas o sonho de hoje poderá ser, amanhã,
realidade. Sabe-se lá até onde nos levará
a evolução que hoje se processa tão acceleradamente?
Como será a vida no anno 2000?
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5 de novembro de 1969
Brasil-EUA no jogo da verdade
Nixon mandou Rockefeller
investigar. Só depois
tomou as decisões. O que
muda para o Brasil?
"...creio no surto industrial brasileiro, em bases estáveis (...) de nosso exclusivo interesse, buscando-se a evolução, o mais cedo que se possa, dos tempos de filial para os tempos de matriz." Presidente Emílio Garrastazu Medici
Se a palavra "filial" fosse substituída por Brasil e "matriz" por
Estados Unidos, o discurso poético e simbolista do General Emílio
Garrastazu Medici ficaria alterado de forma talvez profunda e, sem
dúvida, fora das exatas intenções do novo presidente. Mas, curiosamente,
a mudança corresponderia exatamente ao que pensa boa parte da população
brasileira, uma camada ampla que reúne desde intelectuais e estudantes
inquietos e irritados com "a grande nação do Norte" até mesmo à gente
simples do povo, perplexa e às vezes amedrontada diante do poderio e da
presença americana. Quaisquer que tenham sido as intenções do general -
cujas palavras foram ditas, por coincidência, poucas horas antes do
esperado discurso do presidente Richard Nixon anunciando a nova política
dos Estados Unidos em relação à América Latina -, não resta dúvida que
"a grande nação do Norte" sempre paira como um mito e um desafio diante
de cada novo presidente brasileiro. E não apenas para os presidentes; a
presença, o mistério e a quase provocação da grandeza americana
apresentam-se brutalmente para o homem comum das cidades deste país
tropical, abençoado por Deus, mas como que punido pela doença do
subdesenvolvimento. Às vezes, a presença americana torna-se agressiva.
Subindo a Rua Augusta, área do comércio chique de São Paulo, um
nacionalista preocupado encontra na esquina da Rua Estados Unidos a
Panificadora Colúmbia. Ao seu lado, a loja de presentes Mickey. Seguindo
os letreiros, os sinais do estigma se repetem, Meias Walter, Cine Park,
Yellow Dog, Sister's Shop, Good Joe, Kodak, Voom Voom, indefinidamente,
na mesma língua que já foi estranha e hoje é uma espécie de segundo
vernáculo. São os nomes de bares, boates, lojas, cinemas da cidade
grande, que no campo são substituídos pelos nomes das máquinas
Caterpillar, Yale, Clark, Hyster e pelos dos infelizmente poucos
remédios de grandes laboratórios, como Pfizer, Squibb, Johnson &
Johnson, Upjohn, Lilly, quase todos controlados por capitais americanos.
Estas imagens quase opressivas da presença americana, às vezes
involuntária, misturam-se obrigatóriamente a qualquer tentativa de
analisar as mudanças nas relações do Brasil com os Estados Unidos.
Talvez a referência do Presidente Garrastazu Medici à condição de filial
em que seu país se encontra tenha sido inspirada, em parte, nestas
imagens. Mas, seguramente, o presidente analisa os novos rumos que seu
governo dará ao problema com outros elementos, além de meras impressões e
sensações.
Enquanto dirigia o Serviço Nacional de Informações, ele contribuiu
bastante para a redação do relatório que os brasileiros apresentaram a
Nelson Rockefeller, cujas viagens pela América Latina permitiram colher a
matéria-prima onde se inspira o discurso do Presidente Richard Nixon.
Garrastazu Medici esperava o pronunciamento do presidente americano
para ver onde suas sugestões teriam sido aprovadas e transformadas em
política. E não deve ter tido muitas surpresas. Como grande amigo dos
ministros Hélio Beltrão e Delfim Netto, sabia dos resultados das últimas
posições econômicas do Brasil diante dos Estados Unidos, definidos
principalmente nas reuniões de maio (encontro da CECLA - Comissão
Especial de Coordenação Latino-Americana - em Viña del Mar, Chile) e
junho (conferência do CIES - Conselho Interamericano Econômico e Social -
em Port of Spain, Trinidad). Em Viña del Mar, o Brasil, junto com os
outros países latino-americanos, assinou declaração acusando os EUA de
não virem cumprindo os compromissos assumidos com a América Latina ao
longo dos últimos anos. Na reunião do CIES, já com a presença de uma
delegação americana, a definição das posições - Estados Unidos de um
lado, América Latina de outro - tornou-se mais radical. No discurso de
inauguração, o chanceler chileno Gabriel Valdés anunciou: "Não devemos
ser pacatos, pequenos, timoratos e entreguistas. Não vejo por que
deveríamos manifestar nossas idéias previamente amoldadas ou reduzidas
àquilo que nós acreditamos que os ouvidos dos Estados Unidos podem
escutar".
No meio desse fogo cerrado contra as posições americanas colocou-se o
grande amigo do novo presidente, o ministro Hélio Beltrão. Para evitar
atritos que julgava desnecessários, propôs fórmulas de compromisso
aceitas por ambos os lados. O papel de Beltrão foi tão decisivo que,
após sua volta ao Brasil, recebeu telegrama de Nixon agradecendo por sua
atuação.
O discurso de Nixon na semana passada, que lembra muito e procura
satisfazer algumas das reivindicações latino-americanas de Viña del Mar,
não é, portanto, uma surpresa para Hélio Beltrão. Nem, provavelmente,
para o novo presidente do Brasil.
Do ponto de vista político, Nixon oferece o que o Brasil e os
latino-americanos de um modo geral propuseram na Declaração de Viña del
Mar: a necessidade de "respeitar a personalidade própria da América
Latina" e de buscar soluções elaboradas "com critérios próprios, que
reflitam a identidade nacional". Nixon prometeu criar novo órgão com a
participação dos latinos para administrar a assistência ao
desenvolvimento do hemisfério.
Mas a generosidade no campo das promessas políticas só se traduz numa
medida no nível prático - embora esta seja extremamente importante e
atenda uma longa aspiração latina. De agora em diante, os empréstimos da
Agência Internacional de Desenvolvimento, órgão do governo americano,
não precisarão ser gastos exclusivamente na compra de equipamentos nos
próprios Estados Unidos. Contra estes empréstimos vinculados, Beltrão
investira uma vez chamando-os de "crediário internacional", ou seja, uma
forma de empurrar mercadorias ao freguês com pagamentos em suaves
prestações. A obrigatoriedade de comprar os produtos financiados
exclusivamente nos EUA tinha a desvantagem adicional (segundo relatório
elaborado com a participação do ex-ministro do Planejamento Roberto
Campos) de um aumento de preços de até 100% (como nas vendas "a fiado"
ao comprador pobre, quando o dono da loja eleva logo o preço para
garantir-se de possíveis golpes). A liberdade concedida por Nixon não é
total. As compras ainda continuam restritas - desta vez à América toda.
Para o Brasil a situação é mais vantajosa do que para seus irmãos do
continente. Como já possui um parque industrial desenvolvido, deverá
passar a receber encomendas não só das empresas locais como dos países
vizinhos.
Fora da área puramente econômica, Nixon mostra também sua simpatia
para o caso brasileiro. Sua declaração de que prefere a democracia mas
"no nível diplomático devemos lidar realisticamente com os governos
dentro do sistema interamericano tais como são" encerrou a fase de
timidez da diplomacia americana nas suas relações com governos obrigados
a suspender garantias democráticas, como foi e continua sendo o caso do
Brasil. Essa timidez, nascida no tempo de Kennedy, foi parcialmente
esquecida pelo governo Johnson mas ainda inibia as conversações
políticas dentro do continente.
A insistência americana de "vender" democracia criou, só no Brasil,
dois incidentes envolvendo os embaixadores dos Estados Unidos. Em 1945,
uma entrevista do Embaixador Adolf Berle pedindo eleições livres para
substituir Getúlio gerou uma onda de críticas ao diplomata. Em 1967, um
encontro entre o embaixador John Tuthill e o ex-governador Carlos
Lacerda não agradou ao nosso governo. Paradoxalmente, esses dois
diplomatas haviam sido antecedidos no posto por amigos dos presidentes. O
antecessor de Berle, Jefferson Caffery, se dava muito bem com Getúlio e
era seu parceiro de golfe, apesar de considerá-lo mau jogador. Lincoln
Gordon, antes de abrir a vaga para Tuthill, mantinha excelentes relações
com o Presidente Castelo Branco.
O Brasil só teve um problema grave com diplomatas americanos
envolvendo questões econômicas em 1854, quando Washington tentou forçar
passagem para seus navios através do rio Amazonas sem pedir permissão às
nossas autoridades. O resultado foi que nosso embaixador em Washington
advertiu o Secretário de Estado Marcy e o ministro americano no Rio,
Henry Wise, foi expulso do País. O problema nunca voltou.
No campo interamericano, o Brasil e os Estados Unidos não têm nenhuma
divergência específica. A referência do Presidente Nixon à subversão
cubana dirige-se sobretudo contra o México, que se recusa a cumprir a
decisão da IX Reunião de Consulta, quando foi determinado o rompimento
coletivo com Castro.
Nas questões da subversão e da segurança continental, o Brasil e os
Estados Unidos estão próximos do acordo total. Contudo, as posições,
mesmo parecidas, não são sincronizadas. Em 1965, depois da invasão da
República Dominicana, o Brasil e os Estados Unidos lançaram a idéia da
Força Interamericana de Paz. Pouco depois, por senso político, o
Departamento de Estado abandonou a empreitada deixando o Brasil sozinho
na defesa ideológica da posição. Os interesses dos Estados Unidos nunca
foram convergentes com os da subversão, mas às vezes podem se aproximar
discretamente, como resultado de injunções internacionais. Uma prova
disso foi a presença de Luís Carlos Prestes em 1946 numa solenidade em
homenagem à memória de Roosevelt, na Embaixada americana e ao lado de
Adolf Berle.
Mas é na área econômica, novamente, que o Brasil de Emílio Garrastazu
Medici tem de preocupar-se mais quando faz o balanço das suas relações
com os Estados Unidos e prepara-se para uma nova etapa de coexistência.
Em 1963, com uma dívida nos EUA de aproximadamente meio bilhão de
dólares, estas relações comerciais haviam chegado a um ponto crítico. Na
época, o Presidente John Kennedy chegou a dizer: "Não há nada, na
realidade, que os Estados Unidos possam fazer em benefício do povo do
Brasil se existe uma situação tão instável nas finanças e na economia
daquele país".
Com a Revolução, obteve-se um reescalonamento da dívida (divisão em
parcelas, cujo pagamento é jogado para outros anos). Mas, como é normal
nessas transações, o Brasil teve de adotar medidas que corrigissem a
situação. Dentro da clássica teoria do liberalismo, isto é, de deixar a
economia entregue às forças do mercado para que elas a conduzam à
normalidade, o país teve de reajustar a taxa do dólar (desvalorização de
sua moeda) de acordo com a taxa de inflação. Isso para tornar as
importações mais caras, dificultando-as, e, ao mesmo tempo, estimular as
exportações - com o que seria obtido novo ponto de equilíbrio. Como
reforço de divisas, e para estimular o desenvolvimento, o país procurou
ainda atrair o capital estrangeiro. Essas exigências aos países em
dificuldades sempre provocaram reações mas acabaram sendo respeitadas.
No Brasil, as importações foram liberalizadas (no governo Castelo foram
reduzidos os impostos sobre produtos estrangeiros, provocando, segundo
muitos críticos, a invasão de produtos supérfluos e estabelecendo
competição desleal para produtos nacionais). Procurou-se também oferecer
condições atraentes ao capital estrangeiro, reformando-se a lei de
remessa de lucros e aprovando-se o tratado de garantia e o acordo de
bitributação com os Estados Unidos (estes acordos foram solicitados
pelos EUA, segundo revelação de Anthony M. Solomon, secretário de Estado
assistente para Assuntos Econômicos do governo Johnson, em depoimento
em agosto de 1967 no Congresso dos EUA).
As medidas liberalizantes, inspiradas ou não pelos EUA e suas
agências de ajuda, nem sempre trazem os resultados em nome dos quais
foram tomadas. Para o Brasil, tal política resultou em aumento das
remessas, aumento das importações, sem a compensação de um aumento na
entrada de investimentos estrangeiros (o liberalismo no mercado cambial
provocou ainda, segundo dados oficiais, remessas clandestinas de
aproximadamente 600 milhões de dólares, entre 1964 e 1968, parte delas
correspondentes à saída ilegal de lucros não declarados).
Apesar da modesta entrada de capitais estrangeiros no país, em alguns
casos verificou-se um rápido avanço de grandes empresas americanas e
estrangeiras em geral - em setores com razoável participação de capitais
nacionais. Áreas empresariais brasileiras protestaram sobretudo contra o
fato das concorrentes americanas realizarem seu salto sem a vinda de
dólares, um aparente paradoxo que tem sua explicação: a expansão
decorreu da utilização de recursos levantados aqui mesmo, ou de outras
vantagens resultantes do tratamento favorável que o país dá ao capital
estrangeiro. O problema - que teria inclusive deflagrado sentimentos
nacionalistas em algumas áreas das Forças Armadas - já merecera a
atenção dos EUA antes mesmo do pronunciamento de Nixon.
Mas a orientação do governo brasileiro em relação ao investimento
americano - e estrangeiro em geral - não mudou, mesmo sob o impacto
publicitário dos movimentos nacionalistas militares que passaram a
incomodar os Estados Unidos do outro lado da cordilheira dos Andes, no
Peru e na Bolívia. O Chile assumiu o controle das minas de cobre da
Anaconda Copper Co., o Peru nacionalizou a International Petroleum Co.
(do grupo Rockefeller) e o Governo de Ovando Candia encampou a Gulf Oil
Co.
A política brasileira, no entanto, continuou a mesma em relação ao
capital estrangeiro. A Union Carbide explorará minérios ao longo do rio
Jari; a National Bulk Carriers Inc. vai montar uma indústria de papel na
região do Amazonas; a Grace (que sofreu expropriações no Peru) e a
Rowan estão fazendo projetos para industrializar o peixe amazônico; a
Alcan Aluminium já foi autorizada a minerar a bauxita (minério de
alumínio) do Pará. Não refinará o produto, irá exportá-lo na forma de
aluminita, minério intermediário; a cassiterita (minério de estanho) de
Rondônia será comercializada pela Anaconda; a United States Steel irá
industrializar as jazidas de ferro do Pará, em associação com a
Companhia Vale do Rio Doce (brasileira, uma das 1 maiores empresas de
mineração do mundo).
Enquanto o governo julga benéfica essa vinda de empresas, mesmo das
perseguidas além dos Andes, alguns industriais de setores específicos da
indústria reclamam. O industrial Eurico Amado, presidente do Sindicato
da Indústria Têxtil da Guanabara (em 1964 nomeado por Castelo Branco
como interventor na Confederação Nacional da Indústria), mostra os
riscos desta política: "O país está querendo desenvolver-se
transportando para cá uma perspectiva dos países desenvolvidos. Como não
temos muito capital, nosso bem mais importante é a mão-de-obra
abundante. Mas a política do governo passou a considerar o capital mais
importante que o trabalho. Por isso insistem em importar capital, mais
máquinas que vão tirar a oportunidade de uma aplicação mais abundante da
mão-de-obra". Amado, que não deixa de comparecer a todas as reuniões
com técnicos estrangeiros que tratem deste assunto, faz ainda outras
críticas. Para ele, a política de impostos está sufocando o industrial
nacional: "Em alguns setores industriais controlados por fabricantes
estrangeiros, os impostos só são recolhidos trinta dias depois da
negociação. Com isso as empresas podem movimentar um dinheiro que é
devido ao governo, mantendo um capital de giro razoável. Ficam também
com um saldo médio nos bancos simplesmente fantástico, o que facilita
novos créditos. E com as tecelagens, setor tradicionalmente ocupado por
firmas nacionais, o que acontece? Vendem a 180 dias, pois os clientes
não dispõem de dinheiro para pagar a vista e têm o mesmo prazo para
recolher o IPI. Assim, pagamos o IPI antes de receber e aquelas empresas
recebem o imposto e ainda o retêm por algum tempo".
Amado é radical nas suas conclusões: "Os industriais brasileiros e
todo o povo em geral não podem aceitar este raciocínio de que o uso
indiscriminado da tecnologia estrangeira é bom para o país. Vejam só as
estatísticas e examinem quantos empregos a tai industrialização do
Nordeste produziu. Em Pernambuco, para uma necessidade de 350.000
empregos novos por ano, mesmo com todos os incentivos de 1961 a 1969,
não foram criados nem um décimo dos empregos necessários". Amado diz que
o Nordeste precisa é de tecnologia racional, que saiba empregar em
grande escala nossa mão-de-obra abundante e barata. E não de
automatização, por exemplo. Do outro lado da discussão, e até certo
ponto conscientes das críticas que provocam em homens como Amado, estão
os executivos das empresas americanas. O repórter de VEJA Hélio Gama
ouviu alguns deles na semana passada.
Resumindo a opinião da maioria, tem-se aproximadamente o seguinte: "O
Brasil é um país carente de capitais, nós o temos e o trazemos para cá.
Com isso criamos uma indústria, aumentamos a renda de uma parcela
significativa da população, temos o lucro que nos mantém no negócio,
reinvestimos o lucro ou o remetemos. Com isso todos ganham: o Brasil,
que recebe capitais que não possui, os brasileiros, cuja renda aumenta, e
nós, que ganhamos dinheiro com nossa empresa. Os brasileiros devem
confiar no futuro. As grandes empresas americanas de hoje foram pequenas
empresas também. Que cresceram como as brasileiras crescerão. A
absorção de uma empresa pela outra é normal. Nos Estados Unidos isto é
comum".
Em política, são homens de interesses bem objetivos. Uma síntese de
suas opiniões mais gerais neste ponto: "A política só tem interesse
quando significar estabilidade para nossos investimentos. O capital quer
países que mantenham as regras do jogo econômico mais ou menos
constantes. Havendo isso, não importa quem esteja no governo, qual
partido ou quais pessoas. E a única coisa que importa, acima de tudo: é
preciso que os países interessados em viver em paz com o capital
americano aceitem o sistema econômico americano - ou seja, o
capitalismo".
Que o Brasil é um país capitalista e que a Revolução agora chefiada
pelo General Emílio Garrastazu Medici o manterá nesta trilha não há - a
não ser nas idéias subversivas dos grupos terroristas - nenhuma dúvida.
Mas é um país capitalista que quer ser matriz, e não mais filial, como
diz o novo presidente.
O que é bom para os dois
"O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil." Juracy Magalhães
Há os que concordam e os que discordam da frase com que Juracy
Magalhães, ao ser nomeado embaixador nos Estados Unidos pelo Presidente
Castelo Branco, sintetizou as relações entre os dois países. E há ainda
outros que procuram encarar o assunto dentro de um ângulo mais amplo e
complexo. Afinal, como são e como devem ser as relações entre o Brasil e
os Estados Unidos?
Para o professor Gustavo Corção, pensador católico conservador, "é
vital para o Brasil uma política de bom relacionamento com os Estados
Unidos. Houve governos, sobretudo na fase que precedeu imediatamente a
Revolução de 1964 que hostilizaram os Estados Unidos, atirando-lhes às
costas a culpa de todos os nossos problemas internos. A Revolução
consertou isso, instaurando um clima de confiança recíproca que tem
frutificado em investimentos e riqueza. É claro que, nesta mesma
orientação, as coisas ainda podem melhorar. Sempre se pode melhorar, a
não ser no dia do Juízo Final".
SEM MUDANÇA - O professor Paulo Camilo de Oliveira Pena, do Conselho
Empresarial Brasil-Estados Unidos, não vê porém "alteração fundamental
em nossas relações com os Estados Unidos depois de 1964": "O assunto não
pode ser analisado isoladamente, já que os americanos conduzem sua
política externa nos termos de uma visão de conjunto. Por isso,
continuamos diante de um balanço negativo em que os benefícios continuam
escassos no confronto com o aumento gradativo dos prejuízos. Os termos
de troca estão se deteriorando cada dia mais em prejuízo dos países
exportadores de produtos primários. Será, então, pela melhoria das
condições de troca que se poderá favorecer eficazmente os países
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento".
Amarrando sua conclusão na questão de trocas comerciais, um professor
da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Paraná
diz: "Quaisquer que sejam as relações Brasil-Estados Unidos, são sempre
relações de um país desenvolvido com um subdesenvolvido. Eles, na sua
condição de compradores de alto poder aquisitivo, dão sempre as cartas,
impondo os preços tanto dos produtos primários que levam daqui como dos
produtos industrializados que mandam para cá. Um levantamento recente da
ONU mostra que, nos últimos cinqüenta anos, os nossos produtos sofreram
no comércio com os americanos uma depreciação de 40 por cento. Se, em
1910, trocávamos 100 unidades de produtos agrícolas por 100 unidades de
produtos industriais, em 1960, em troca das mesmas 100 unidades,
recebíamos apenas 60. Significa que eles estão cobrando mais pelos seus
produtos e pagando menos pelos nossos".
DISTINÇÃO NECESSÁRIA - Outro professor universitário do Paraná, o
advogado Noel Samwais, diz que é "preciso primeiro diferenciar os grupos
econômicos americanos do governo de seu país, que sempre teve boa
vontade nos suas relações comerciais com o Brasil. É verdade que o
governo americano até há pouco tempo tomou atitudes unilaterais como os
empréstimos condicionados (que obrigavam o Brasil a empregar recursos
recebidos na compra de materiais americanos), mas foi mais por um
desconhecimento real da situação do que por má intenção".
Mas o Deputado Humberto Lucena, líder do MDB na Câmara, parece
discordar dessa opinião quando afirma: "Lamentavelmente, a nosso ver, o
Brasil submeteu-se demais a certas reivindicações de empresas privadas
americanas que, a titulo de defenderem suas inversões de capital na
América Latina, exigiram do governo dos Estados Unidos que conseguisse,
como de fato conseguiu, a assinatura de acordo de garantia de
investimentos, pelo qual nosso país ofereceu plena cobertura aos riscos
porventura decorrentes da aplicação de capitais americanos nos díversos
setores da economia brasileira".
"Obviamente, se entre homens há amizade e entre povos há respeito e
simpatia, entre países o que prepondera é o interesse", afirma Eurico
Rezende, vice-líder do governo no Senado. E observa: "O que importa é
que as transações se façam com respeito às leis do país para onde se
destinam os investimentos ou empréstimos. Ora, tais operações relativas
ao Brasil se fazem com o atendimento de todas as formalidades legais,
sobressaindo-se a audiência, muitas vezes polêmica, do Congresso, após o
exame de órgãos colegiados e técnicos do Poder Executivo". Mas faz a
ressalva: "Alguma coisa está errada, não há dúvida, na política e no
programa de cooperação dos Estados Unidos para com a América Latina.
Quem reconhece é o próprio Presidente Nixon, ao instituir a Missão
Rockefeller, cujas observações e trabalhos evidenciaram a necessidade de
uma reformulação. Aguardemos o advento dessas alterações, com a
confiança ditada pelos imperativos do bom entendimento internacional. E
tudo indica que essa intercooperação será aperfeiçoada e dinamizada".
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