Ecos do Passado

Cacareco agora é Excelência
Cacareco, um pacato rinoceronte, virou candidato de um bairro paulista que cresceu demais: Osasco. A história de uma autonomia (negada) e as 100.000 células para vereador.
Texto de NEIL FERREIRA       Fotos de GEORGE TOROK
(Do Bureau de O Cruzeiro em São Paulo)
Dos 540 candidatos que ofereceram suas vidas em holocausto ao bem-estar público concorrendo às 45 cadeiras da Câmara Munipal de São Paulo, sòmente um - Cacareco - conseguiu empolgar, de maneira espetacularmente inédita o eleitorado paulistano. Sem prometer nada (êle não pode prometer: não sabe nem falar), sem partido politíco definido - sua legenda poderia ser objeto de confusões: PC (Partido Cacareco) e alguém ainda acabaria sem visto de saída para países da banda de cá do mundo - enfim, com sua candidatura lançada sòmente alguns dias antes do pleito, sua eleição está garantida. A soma de seus votos é um recorde nas eleições municipais de São Paulo, pois Cacareco, sozinho, totaliza muito mais do que a legenda mais poderosa. A média do seu eleitorado mantém-se firme, com 20 a 30 votos por urna, em todos os bairros, do mais pobre ao mais rico. Aliás, o fenômeno político encarnado por Cacareco é algo que sòmente poderia ser explicado por algum sujeito muito entendido em dialética: sua candidatura ganhou corpo no seio da massa, de maneira espontânea, conquistou o restinho da classe média que ainda não morreu de fome e atingiu as mais altas camadas da burguesia. Ainda assim, tudo foi tentado contra êle: as forças ocultas que tentam combater as correntes populares investiram, pelos jornais, rádios e TV, numa campanha ruidosa, com o objetivo precípuo de evitar o ingresso do elemento perigoso ao regime na versão paulista da Gaiola de Ouro. Tal campanha ficou sem resposta. Cacareco não tinha acesso às fontes de divulgação. Em compensação, êle também não se aborreceu: continuou sua vidinha de playboy pobre (o tal que não joga damas de nenhum andar, mas come e dorme e não faz nada). O seu comitê eleitoral continuou funcionando no Jardim Zoológico de São Paulo, e Cacareco sòmente se desnorteou quando um dos seus mais ferrenhos oponentes dedicou todo um editorial à sua candidatura, no jornal mais conservador da capital paulista. Depois Cacareco se zangou quando foi intentada (e conseguida) uma solução extralegal e antidemocrática para sua candidatura: a altura dos acontecimentos em que eleitor do Cacareco se portava como torcedor do Santos F. C. - peito estufado e ar de já ganhou - as forças ocultas conseguiram que o candidato popular fôsseexilado, dois dias antes da eleição, para o Rio de Janeiro. O golpe consumou-se na calada da noite, mas a coisa não foi tão calada assim: sem mais aquela, enfiaram-no num caminhão. Aí, sim, êle se danou. Ficou perigoso. Não só para o regime, mas (e principalmente) para quem estava por perto. Mas o Povo e as Classes Oprimidas foram magnificamente à forra e concederam, aproximadamente, cem mil votos a Cacareco. Êsse movimento orginal surgiu, agora se sabe, num bairro dos mais populosos de S. Paulo: Osasco. Êsse bairro crescera e desejava agora a sua autonomia. Um típico caso de gigantismo. Houve um legítimo movimento em prol da emancipação de Osasco. Com a proximidade das eleições paulistas, já subiam a 300 os candidatos do famoso bairro. Acontece que o Supremo Tribunal repudiou as pretensões dos cidadãos de Osasco. Daí a reação original: 100 mil cédulas foram impressas e tôdas com o nome do popular Cacareco, como candidato. Afirma-se agora que o movimento da gente de Osasco atingiu outras ruas e outros bairros. Virou candidatura nacional. Com isso, Cacareco virou excelência. Pode ser que êle não chegue a tomar posse, mas se transformou no vereador que mais come (sem aspas) no mundo. E quando Cacareco voltar do exílio, o PC (Partico do Cacareco, repetimos) terá reservada para êle não uma simples vereança, mas uma cadeira de deputado.
 


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Éra das Forças Hydraulicas
Anno 2000.
A população do Brasil attingiu 200 milhões de pessoas a precisarem de energia para as suas multiplas actividades: compreende-se como essa necessidade levou ao aproveitamento das forças hydraulicas. Lentamente, medrosamente, a principio, essa utilização de energia se foi, depois, aos poucos accelerando. No anno 2000 já estão longe os tempos em que ainda se importavam carvão e petroleo! Esses recursos primitivos, condemnados pelo progresso da technica, foram desapparecendo, passando a constituir apenas uma recordação historica.
Os 50 milhões de cavallos-vapor de energia hydro-electrica, utilizados no Brasil, no anno 2000, equivalendo ao trabalho mecanico de 600 milhões de homens, a população brasileira, do ponto de vista energetico, é então computavel em 800 milhões. Nessas condições, não admira que sejam enfrentados e convenientemente resolvidos os problemas da producção. As questões nacionaes são, então, estudadas por gente competente, tendo acabado, ha muito, a influencia dos politicos profissionaes. A Natureza, dia a dia dominada, é cada vez mais perfeitamente aproveitada. A luta do homem para o progresso passou a ser travada especialmente nos laboratorios de pesquisa. Ahi é que perscrutam, pacientemente, os segredos da Natureza, e dahi é que saem os processos, cada vez mais aperfeiçoados, de dominio da energia cosmica. Como estamos longe dos tempos em que nem havia Universidade no Brasil, a nao ser umas instituições de fachada, formadas por escolas exclusivamente para ensino profissional, e onde a pesquisa scientifica não se podia fazer!
Todas as actividades industriaes foram avassaladas pela energia electrica. São as industrias electro-chimicas, num desdobramento maravilhoso; é a electro-metallurgia; é, ainda, a energia para tudo. As distancias desappareceram, por assim dizer, desde que se resolveu o problema de irradiação da energia.
Lembram-se todos como começou a ser resolvida essa questão. Foi, a principio, a radio-telephonia, logo seguida da radio-photographia. Pouco depois, irradiava-se energia pra fins industriaes, e os motores electricos com energia irradiada se installaram em todos os vehiculos: bondes, trens, automoveis, aeroplanos, navios; e em todas as fabricas; e em todos os logares onde a energia se faz precisa. O problema da distribuição da energia passou, desde então, a ser uma questão definitivamente resolvida.
Transformara-se, com isso, a vida, que Nietzsche affirmou ser, essencialmente, uma aspiração á maior somma de poder, numa vontade que permanece, intima e profunda, em todo ser vivo. A luta pela existencia, pelo poder, pela preponderancia, com a nova forma de distribuição de energia passara a ser uma luta pela posse da energia electrica. A importancia dos povos se alterara, sendo regida a sua classificação pelo valor das reservas em forças hydraulicas.
É assim que o 1° lugar passara a ser da Africa, com os seus 190 milhões de cavallos-vapor hydro-electricos. Em 2° logar vinha a Asia, com 71 milhões. A America do Norte, com 62 milhões, ficara em 3° logar, e a America do Sul em 4° logar, com 60 milhoes de cavallos-vapor hydro-electricos, dos quase 50 cabendo ao Brasil. A Europa, com 45 milhões de cavallos, ficara tendo atrás de si unicamente a Oceania, com 17 milhões.
Cabia agora o dominio aos povos que dispunham de maior somma de energia hydro-electrica. Passara o tempo do imperialismo do carvão e do petroleo, e chegara a era da energia electrica. Os 445 milhões de cavallos-vapor, em que se orçara a energia total das forças hydraulicas da Terra, passaram a regular decisivamente a importancia relativa das 5 partes do mundo.
Ainda ha, no anno 2000, philosophos a indagarem se o progresso existe, affirmando que o que interessa não é poder ser enviado o pensamento á volta da terra, em alguns segundos, mas sim saber se esse pensamento é melhor, mais profundamente humano, mais justo. A vida, em todo caso, mudou completamente. Melhor? Peor? - É difficil sabe-lo. Mas, seguramente, é differente.
É a era da electricidade.
A differença entre a vida de então e a dos anteriores é alguma coisa como a differença hoje existente entre a vida dss grandes cidades e a do campo. O ambiente é outro. Outra é a organização da vida. Cada vez o homem se afasta mais da Natureza. Primeiro, liberta-se do dia e da noite. A luz artifical permitte-lhe a vida nocturna absolutamente igual á do dia; a luz solar não é mais reguladora dos habitos quotidianos. A vida em grandes aglomerações vae, aos poucos, deixando em todos os habitos a sua marca. As facilidades augmentam para tudo e os multiplos actos da vida se vão, lentamente mas constantemente, adaptando á nova ordem das coisas. O tempo se distribue de outro modo, e os affazeres são outros. Outros são, tambem, os divertimentos. Insensivelmente, as differenças se vão accentuando.
As viagens e os proprios passeios diminuiram muito, desde que, sem sair de casa, pode-se ver o que ha em qualquer parte da Terra: a televisão, juntada á telephonia, modificou radicalmente os habitos. Não ha necessidade de sair para fazer compras: vê-se, escolhe-se, encommenda-se tupo pelo telephone-televisor automatico. Não ha mais necessidade de viajar, para ver terras longinquas: é só ligar o receptor, e visita-se, commodamente, qualquer museu, ou qualquer paiz. Sómente os objectos devem ser transportados.
Na era da electricidade o rei dos metaes é o aluminio, retirado das argilas pela energia electrica. O aluminio supplantou, com as suas ligas, o ferro, pesado demais e facilmente oxydavel, e ainda substitui o papel, tão facilmente deterioravel. De aluminio são os livros. É em folhas de aluminio que se escreve.
A era da electricidade se caracteriza, essencialmente, pelo emprego da electricidade em todas as formas de energia. Energia luminosa: tudo se iluminna electricamente. Energia chimica: tudo deriva da electricidade. Energia thermica: tudo se aquece ou se resfria pela electricidade. Energia mecanica: tudo se movimenta pela electricidade.
Servindo para tudo, a energia electrica passa a ser a nova moeda. O ouro e as suas representações são formas obsoletas de medir valores. A moeda, no anno 2000, é, tambem, a energia electrica. Pagam-se as compras em kilowatts. Paga-se o trabalho en kilowatts.
A revolução trazida é principalmente nos habitos. Continúa a haver desigualdades sociaes. Ha ricos, possuidores de milhões de killowatts-horas, remediados, que têm alguns milhares de unidades de energia; e pobres, que dispõem apenas de algumas unidades. É verdade que não ha mais fome, desde a adopção do trabalho obrigatorio minimo, nas usinas distribuidoras de energia. Mas as questões sociaes continuam.
Muitos pretendem estender o dominio da actividade industrial do Estado. Parece-lhes insufficiente o monopolio governamental das usinas geradoras e distribuidoras de energia. Começou a questão a proposito da regularização do clima. Uma vez reservada para o Estado a faculdade de provocar as chuvas pela energia irradiada ás nuvens, determinando-lhes a condensação, pareceu a muitos que se deveriam ampliar ainda mais as horas de trabalho obrigatorio minimo, servir-se-ia melhor a colectividade minima do trabalho. Só haveria vantagens nisso.
Objectam, porém, alguns ser o caso das usinas de energia, evidentemente, especial. Da mesma forma, o da distribuição das chuvas, vantajosamente affecto ás autoridades, para beneficio geral. A Repartição das Chuvas, dispondo de todo o serviço official de estatistica, e em connexão com os demais repartições do Ministerio da Agricultura, é uma organização que se resolveu dever ser do Estado. Ampliar, porém, ainda mais os serviços governamentaes, numa socialização progressiva de todas as actividades, não merece as sympathias de um grupo numeroso. Já todos os homens e todas as mulheres, maiores de 18 annos, são obrigados a um serviço diario de 2 horas. Breve serão 3 horas. Onde se irá para nesse caminho? Invocam-se contra as idéias de socialização os velhos principios da liberdade individual. A questão está, assim, longe de ser resolvida
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Sonho? - Sim. Mas o sonho de hoje poderá ser, amanhã, realidade. Sabe-se lá até onde nos levará a evolução que hoje se processa tão acceleradamente? Como será a vida no anno 2000?

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5 de novembro de 1969
Brasil-EUA no
jogo da verdade

Nixon mandou Rockefeller
investigar. Só depois
tomou as decisões. O que
muda para o Brasil?
"...creio no surto industrial brasileiro, em bases estáveis (...) de nosso
exclusivo interesse, buscando-se a evolução, o mais cedo que
se possa, dos tempos de filial para os tempos de matriz."
Presidente Emílio Garrastazu Medici

Se a palavra "filial" fosse substituída por Brasil e "matriz" por Estados Unidos, o discurso poético e simbolista do General Emílio Garrastazu Medici ficaria alterado de forma talvez profunda e, sem dúvida, fora das exatas intenções do novo presidente. Mas, curiosamente, a mudança corresponderia exatamente ao que pensa boa parte da população brasileira, uma camada ampla que reúne desde intelectuais e estudantes inquietos e irritados com "a grande nação do Norte" até mesmo à gente simples do povo, perplexa e às vezes amedrontada diante do poderio e da presença americana. Quaisquer que tenham sido as intenções do general - cujas palavras foram ditas, por coincidência, poucas horas antes do esperado discurso do presidente Richard Nixon anunciando a nova política dos Estados Unidos em relação à América Latina -, não resta dúvida que "a grande nação do Norte" sempre paira como um mito e um desafio diante de cada novo presidente brasileiro. E não apenas para os presidentes; a presença, o mistério e a quase provocação da grandeza americana apresentam-se brutalmente para o homem comum das cidades deste país tropical, abençoado por Deus, mas como que punido pela doença do subdesenvolvimento. Às vezes, a presença americana torna-se agressiva. Subindo a Rua Augusta, área do comércio chique de São Paulo, um nacionalista preocupado encontra na esquina da Rua Estados Unidos a Panificadora Colúmbia. Ao seu lado, a loja de presentes Mickey. Seguindo os letreiros, os sinais do estigma se repetem, Meias Walter, Cine Park, Yellow Dog, Sister's Shop, Good Joe, Kodak, Voom Voom, indefinidamente, na mesma língua que já foi estranha e hoje é uma espécie de segundo vernáculo. São os nomes de bares, boates, lojas, cinemas da cidade grande, que no campo são substituídos pelos nomes das máquinas Caterpillar, Yale, Clark, Hyster e pelos dos infelizmente poucos remédios de grandes laboratórios, como Pfizer, Squibb, Johnson & Johnson, Upjohn, Lilly, quase todos controlados por capitais americanos.
Estas imagens quase opressivas da presença americana, às vezes involuntária, misturam-se obrigatóriamente a qualquer tentativa de analisar as mudanças nas relações do Brasil com os Estados Unidos. Talvez a referência do Presidente Garrastazu Medici à condição de filial em que seu país se encontra tenha sido inspirada, em parte, nestas imagens. Mas, seguramente, o presidente analisa os novos rumos que seu governo dará ao problema com outros elementos, além de meras impressões e sensações.
Enquanto dirigia o Serviço Nacional de Informações, ele contribuiu bastante para a redação do relatório que os brasileiros apresentaram a Nelson Rockefeller, cujas viagens pela América Latina permitiram colher a matéria-prima onde se inspira o discurso do Presidente Richard Nixon.
Garrastazu Medici esperava o pronunciamento do presidente americano para ver onde suas sugestões teriam sido aprovadas e transformadas em política. E não deve ter tido muitas surpresas. Como grande amigo dos ministros Hélio Beltrão e Delfim Netto, sabia dos resultados das últimas posições econômicas do Brasil diante dos Estados Unidos, definidos principalmente nas reuniões de maio (encontro da CECLA - Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana - em Viña del Mar, Chile) e junho (conferência do CIES - Conselho Interamericano Econômico e Social - em Port of Spain, Trinidad). Em Viña del Mar, o Brasil, junto com os outros países latino-americanos, assinou declaração acusando os EUA de não virem cumprindo os compromissos assumidos com a América Latina ao longo dos últimos anos. Na reunião do CIES, já com a presença de uma delegação americana, a definição das posições - Estados Unidos de um lado, América Latina de outro - tornou-se mais radical. No discurso de inauguração, o chanceler chileno Gabriel Valdés anunciou: "Não devemos ser pacatos, pequenos, timoratos e entreguistas. Não vejo por que deveríamos manifestar nossas idéias previamente amoldadas ou reduzidas àquilo que nós acreditamos que os ouvidos dos Estados Unidos podem escutar".
No meio desse fogo cerrado contra as posições americanas colocou-se o grande amigo do novo presidente, o ministro Hélio Beltrão. Para evitar atritos que julgava desnecessários, propôs fórmulas de compromisso aceitas por ambos os lados. O papel de Beltrão foi tão decisivo que, após sua volta ao Brasil, recebeu telegrama de Nixon agradecendo por sua atuação.
O discurso de Nixon na semana passada, que lembra muito e procura satisfazer algumas das reivindicações latino-americanas de Viña del Mar, não é, portanto, uma surpresa para Hélio Beltrão. Nem, provavelmente, para o novo presidente do Brasil.
Do ponto de vista político, Nixon oferece o que o Brasil e os latino-americanos de um modo geral propuseram na Declaração de Viña del Mar: a necessidade de "respeitar a personalidade própria da América Latina" e de buscar soluções elaboradas "com critérios próprios, que reflitam a identidade nacional". Nixon prometeu criar novo órgão com a participação dos latinos para administrar a assistência ao desenvolvimento do hemisfério.
Mas a generosidade no campo das promessas políticas só se traduz numa medida no nível prático - embora esta seja extremamente importante e atenda uma longa aspiração latina. De agora em diante, os empréstimos da Agência Internacional de Desenvolvimento, órgão do governo americano, não precisarão ser gastos exclusivamente na compra de equipamentos nos próprios Estados Unidos. Contra estes empréstimos vinculados, Beltrão investira uma vez chamando-os de "crediário internacional", ou seja, uma forma de empurrar mercadorias ao freguês com pagamentos em suaves prestações. A obrigatoriedade de comprar os produtos financiados exclusivamente nos EUA tinha a desvantagem adicional (segundo relatório elaborado com a participação do ex-ministro do Planejamento Roberto Campos) de um aumento de preços de até 100% (como nas vendas "a fiado" ao comprador pobre, quando o dono da loja eleva logo o preço para garantir-se de possíveis golpes). A liberdade concedida por Nixon não é total. As compras ainda continuam restritas - desta vez à América toda. Para o Brasil a situação é mais vantajosa do que para seus irmãos do continente. Como já possui um parque industrial desenvolvido, deverá passar a receber encomendas não só das empresas locais como dos países vizinhos.
Fora da área puramente econômica, Nixon mostra também sua simpatia para o caso brasileiro. Sua declaração de que prefere a democracia mas "no nível diplomático devemos lidar realisticamente com os governos dentro do sistema interamericano tais como são" encerrou a fase de timidez da diplomacia americana nas suas relações com governos obrigados a suspender garantias democráticas, como foi e continua sendo o caso do Brasil. Essa timidez, nascida no tempo de Kennedy, foi parcialmente esquecida pelo governo Johnson mas ainda inibia as conversações políticas dentro do continente.
A insistência americana de "vender" democracia criou, só no Brasil, dois incidentes envolvendo os embaixadores dos Estados Unidos. Em 1945, uma entrevista do Embaixador Adolf Berle pedindo eleições livres para substituir Getúlio gerou uma onda de críticas ao diplomata. Em 1967, um encontro entre o embaixador John Tuthill e o ex-governador Carlos Lacerda não agradou ao nosso governo. Paradoxalmente, esses dois diplomatas haviam sido antecedidos no posto por amigos dos presidentes. O antecessor de Berle, Jefferson Caffery, se dava muito bem com Getúlio e era seu parceiro de golfe, apesar de considerá-lo mau jogador. Lincoln Gordon, antes de abrir a vaga para Tuthill, mantinha excelentes relações com o Presidente Castelo Branco.
O Brasil só teve um problema grave com diplomatas americanos envolvendo questões econômicas em 1854, quando Washington tentou forçar passagem para seus navios através do rio Amazonas sem pedir permissão às nossas autoridades. O resultado foi que nosso embaixador em Washington advertiu o Secretário de Estado Marcy e o ministro americano no Rio, Henry Wise, foi expulso do País. O problema nunca voltou.
No campo interamericano, o Brasil e os Estados Unidos não têm nenhuma divergência específica. A referência do Presidente Nixon à subversão cubana dirige-se sobretudo contra o México, que se recusa a cumprir a decisão da IX Reunião de Consulta, quando foi determinado o rompimento coletivo com Castro.
Nas questões da subversão e da segurança continental, o Brasil e os Estados Unidos estão próximos do acordo total. Contudo, as posições, mesmo parecidas, não são sincronizadas. Em 1965, depois da invasão da República Dominicana, o Brasil e os Estados Unidos lançaram a idéia da Força Interamericana de Paz. Pouco depois, por senso político, o Departamento de Estado abandonou a empreitada deixando o Brasil sozinho na defesa ideológica da posição. Os interesses dos Estados Unidos nunca foram convergentes com os da subversão, mas às vezes podem se aproximar discretamente, como resultado de injunções internacionais. Uma prova disso foi a presença de Luís Carlos Prestes em 1946 numa solenidade em homenagem à memória de Roosevelt, na Embaixada americana e ao lado de Adolf Berle.
Mas é na área econômica, novamente, que o Brasil de Emílio Garrastazu Medici tem de preocupar-se mais quando faz o balanço das suas relações com os Estados Unidos e prepara-se para uma nova etapa de coexistência. Em 1963, com uma dívida nos EUA de aproximadamente meio bilhão de dólares, estas relações comerciais haviam chegado a um ponto crítico. Na época, o Presidente John Kennedy chegou a dizer: "Não há nada, na realidade, que os Estados Unidos possam fazer em benefício do povo do Brasil se existe uma situação tão instável nas finanças e na economia daquele país".
Com a Revolução, obteve-se um reescalonamento da dívida (divisão em parcelas, cujo pagamento é jogado para outros anos). Mas, como é normal nessas transações, o Brasil teve de adotar medidas que corrigissem a situação. Dentro da clássica teoria do liberalismo, isto é, de deixar a economia entregue às forças do mercado para que elas a conduzam à normalidade, o país teve de reajustar a taxa do dólar (desvalorização de sua moeda) de acordo com a taxa de inflação. Isso para tornar as importações mais caras, dificultando-as, e, ao mesmo tempo, estimular as exportações - com o que seria obtido novo ponto de equilíbrio. Como reforço de divisas, e para estimular o desenvolvimento, o país procurou ainda atrair o capital estrangeiro. Essas exigências aos países em dificuldades sempre provocaram reações mas acabaram sendo respeitadas. No Brasil, as importações foram liberalizadas (no governo Castelo foram reduzidos os impostos sobre produtos estrangeiros, provocando, segundo muitos críticos, a invasão de produtos supérfluos e estabelecendo competição desleal para produtos nacionais). Procurou-se também oferecer condições atraentes ao capital estrangeiro, reformando-se a lei de remessa de lucros e aprovando-se o tratado de garantia e o acordo de bitributação com os Estados Unidos (estes acordos foram solicitados pelos EUA, segundo revelação de Anthony M. Solomon, secretário de Estado assistente para Assuntos Econômicos do governo Johnson, em depoimento em agosto de 1967 no Congresso dos EUA).
As medidas liberalizantes, inspiradas ou não pelos EUA e suas agências de ajuda, nem sempre trazem os resultados em nome dos quais foram tomadas. Para o Brasil, tal política resultou em aumento das remessas, aumento das importações, sem a compensação de um aumento na entrada de investimentos estrangeiros (o liberalismo no mercado cambial provocou ainda, segundo dados oficiais, remessas clandestinas de aproximadamente 600 milhões de dólares, entre 1964 e 1968, parte delas correspondentes à saída ilegal de lucros não declarados).
Apesar da modesta entrada de capitais estrangeiros no país, em alguns casos verificou-se um rápido avanço de grandes empresas americanas e estrangeiras em geral - em setores com razoável participação de capitais nacionais. Áreas empresariais brasileiras protestaram sobretudo contra o fato das concorrentes americanas realizarem seu salto sem a vinda de dólares, um aparente paradoxo que tem sua explicação: a expansão decorreu da utilização de recursos levantados aqui mesmo, ou de outras vantagens resultantes do tratamento favorável que o país dá ao capital estrangeiro. O problema - que teria inclusive deflagrado sentimentos nacionalistas em algumas áreas das Forças Armadas - já merecera a atenção dos EUA antes mesmo do pronunciamento de Nixon.
Mas a orientação do governo brasileiro em relação ao investimento americano - e estrangeiro em geral - não mudou, mesmo sob o impacto publicitário dos movimentos nacionalistas militares que passaram a incomodar os Estados Unidos do outro lado da cordilheira dos Andes, no Peru e na Bolívia. O Chile assumiu o controle das minas de cobre da Anaconda Copper Co., o Peru nacionalizou a International Petroleum Co. (do grupo Rockefeller) e o Governo de Ovando Candia encampou a Gulf Oil Co.
A política brasileira, no entanto, continuou a mesma em relação ao capital estrangeiro. A Union Carbide explorará minérios ao longo do rio Jari; a National Bulk Carriers Inc. vai montar uma indústria de papel na região do Amazonas; a Grace (que sofreu expropriações no Peru) e a Rowan estão fazendo projetos para industrializar o peixe amazônico; a Alcan Aluminium já foi autorizada a minerar a bauxita (minério de alumínio) do Pará. Não refinará o produto, irá exportá-lo na forma de aluminita, minério intermediário; a cassiterita (minério de estanho) de Rondônia será comercializada pela Anaconda; a United States Steel irá industrializar as jazidas de ferro do Pará, em associação com a Companhia Vale do Rio Doce (brasileira, uma das 1 maiores empresas de mineração do mundo).
Enquanto o governo julga benéfica essa vinda de empresas, mesmo das perseguidas além dos Andes, alguns industriais de setores específicos da indústria reclamam. O industrial Eurico Amado, presidente do Sindicato da Indústria Têxtil da Guanabara (em 1964 nomeado por Castelo Branco como interventor na Confederação Nacional da Indústria), mostra os riscos desta política: "O país está querendo desenvolver-se transportando para cá uma perspectiva dos países desenvolvidos. Como não temos muito capital, nosso bem mais importante é a mão-de-obra abundante. Mas a política do governo passou a considerar o capital mais importante que o trabalho. Por isso insistem em importar capital, mais máquinas que vão tirar a oportunidade de uma aplicação mais abundante da mão-de-obra". Amado, que não deixa de comparecer a todas as reuniões com técnicos estrangeiros que tratem deste assunto, faz ainda outras críticas. Para ele, a política de impostos está sufocando o industrial nacional: "Em alguns setores industriais controlados por fabricantes estrangeiros, os impostos só são recolhidos trinta dias depois da negociação. Com isso as empresas podem movimentar um dinheiro que é devido ao governo, mantendo um capital de giro razoável. Ficam também com um saldo médio nos bancos simplesmente fantástico, o que facilita novos créditos. E com as tecelagens, setor tradicionalmente ocupado por firmas nacionais, o que acontece? Vendem a 180 dias, pois os clientes não dispõem de dinheiro para pagar a vista e têm o mesmo prazo para recolher o IPI. Assim, pagamos o IPI antes de receber e aquelas empresas recebem o imposto e ainda o retêm por algum tempo".
Amado é radical nas suas conclusões: "Os industriais brasileiros e todo o povo em geral não podem aceitar este raciocínio de que o uso indiscriminado da tecnologia estrangeira é bom para o país. Vejam só as estatísticas e examinem quantos empregos a tai industrialização do Nordeste produziu. Em Pernambuco, para uma necessidade de 350.000 empregos novos por ano, mesmo com todos os incentivos de 1961 a 1969, não foram criados nem um décimo dos empregos necessários". Amado diz que o Nordeste precisa é de tecnologia racional, que saiba empregar em grande escala nossa mão-de-obra abundante e barata. E não de automatização, por exemplo. Do outro lado da discussão, e até certo ponto conscientes das críticas que provocam em homens como Amado, estão os executivos das empresas americanas. O repórter de VEJA Hélio Gama ouviu alguns deles na semana passada.
Resumindo a opinião da maioria, tem-se aproximadamente o seguinte: "O Brasil é um país carente de capitais, nós o temos e o trazemos para cá. Com isso criamos uma indústria, aumentamos a renda de uma parcela significativa da população, temos o lucro que nos mantém no negócio, reinvestimos o lucro ou o remetemos. Com isso todos ganham: o Brasil, que recebe capitais que não possui, os brasileiros, cuja renda aumenta, e nós, que ganhamos dinheiro com nossa empresa. Os brasileiros devem confiar no futuro. As grandes empresas americanas de hoje foram pequenas empresas também. Que cresceram como as brasileiras crescerão. A absorção de uma empresa pela outra é normal. Nos Estados Unidos isto é comum".
Em política, são homens de interesses bem objetivos. Uma síntese de suas opiniões mais gerais neste ponto: "A política só tem interesse quando significar estabilidade para nossos investimentos. O capital quer países que mantenham as regras do jogo econômico mais ou menos constantes. Havendo isso, não importa quem esteja no governo, qual partido ou quais pessoas. E a única coisa que importa, acima de tudo: é preciso que os países interessados em viver em paz com o capital americano aceitem o sistema econômico americano - ou seja, o capitalismo".
Que o Brasil é um país capitalista e que a Revolução agora chefiada pelo General Emílio Garrastazu Medici o manterá nesta trilha não há - a não ser nas idéias subversivas dos grupos terroristas - nenhuma dúvida. Mas é um país capitalista que quer ser matriz, e não mais filial, como diz o novo presidente.

O que é bom para os dois
"O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil."
Juracy Magalhães

Há os que concordam e os que discordam da frase com que Juracy Magalhães, ao ser nomeado embaixador nos Estados Unidos pelo Presidente Castelo Branco, sintetizou as relações entre os dois países. E há ainda outros que procuram encarar o assunto dentro de um ângulo mais amplo e complexo. Afinal, como são e como devem ser as relações entre o Brasil e os Estados Unidos?
Para o professor Gustavo Corção, pensador católico conservador, "é vital para o Brasil uma política de bom relacionamento com os Estados Unidos. Houve governos, sobretudo na fase que precedeu imediatamente a Revolução de 1964 que hostilizaram os Estados Unidos, atirando-lhes às costas a culpa de todos os nossos problemas internos. A Revolução consertou isso, instaurando um clima de confiança recíproca que tem frutificado em investimentos e riqueza. É claro que, nesta mesma orientação, as coisas ainda podem melhorar. Sempre se pode melhorar, a não ser no dia do Juízo Final".
SEM MUDANÇA - O professor Paulo Camilo de Oliveira Pena, do Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos, não vê porém "alteração fundamental em nossas relações com os Estados Unidos depois de 1964": "O assunto não pode ser analisado isoladamente, já que os americanos conduzem sua política externa nos termos de uma visão de conjunto. Por isso, continuamos diante de um balanço negativo em que os benefícios continuam escassos no confronto com o aumento gradativo dos prejuízos. Os termos de troca estão se deteriorando cada dia mais em prejuízo dos países exportadores de produtos primários. Será, então, pela melhoria das condições de troca que se poderá favorecer eficazmente os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento".
Amarrando sua conclusão na questão de trocas comerciais, um professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Paraná diz: "Quaisquer que sejam as relações Brasil-Estados Unidos, são sempre relações de um país desenvolvido com um subdesenvolvido. Eles, na sua condição de compradores de alto poder aquisitivo, dão sempre as cartas, impondo os preços tanto dos produtos primários que levam daqui como dos produtos industrializados que mandam para cá. Um levantamento recente da ONU mostra que, nos últimos cinqüenta anos, os nossos produtos sofreram no comércio com os americanos uma depreciação de 40 por cento. Se, em 1910, trocávamos 100 unidades de produtos agrícolas por 100 unidades de produtos industriais, em 1960, em troca das mesmas 100 unidades, recebíamos apenas 60. Significa que eles estão cobrando mais pelos seus produtos e pagando menos pelos nossos".
DISTINÇÃO NECESSÁRIA - Outro professor universitário do Paraná, o advogado Noel Samwais, diz que é "preciso primeiro diferenciar os grupos econômicos americanos do governo de seu país, que sempre teve boa vontade nos suas relações comerciais com o Brasil. É verdade que o governo americano até há pouco tempo tomou atitudes unilaterais como os empréstimos condicionados (que obrigavam o Brasil a empregar recursos recebidos na compra de materiais americanos), mas foi mais por um desconhecimento real da situação do que por má intenção".
Mas o Deputado Humberto Lucena, líder do MDB na Câmara, parece discordar dessa opinião quando afirma: "Lamentavelmente, a nosso ver, o Brasil submeteu-se demais a certas reivindicações de empresas privadas americanas que, a titulo de defenderem suas inversões de capital na América Latina, exigiram do governo dos Estados Unidos que conseguisse, como de fato conseguiu, a assinatura de acordo de garantia de investimentos, pelo qual nosso país ofereceu plena cobertura aos riscos porventura decorrentes da aplicação de capitais americanos nos díversos setores da economia brasileira".
"Obviamente, se entre homens há amizade e entre povos há respeito e simpatia, entre países o que prepondera é o interesse", afirma Eurico Rezende, vice-líder do governo no Senado. E observa: "O que importa é que as transações se façam com respeito às leis do país para onde se destinam os investimentos ou empréstimos. Ora, tais operações relativas ao Brasil se fazem com o atendimento de todas as formalidades legais, sobressaindo-se a audiência, muitas vezes polêmica, do Congresso, após o exame de órgãos colegiados e técnicos do Poder Executivo". Mas faz a ressalva: "Alguma coisa está errada, não há dúvida, na política e no programa de cooperação dos Estados Unidos para com a América Latina. Quem reconhece é o próprio Presidente Nixon, ao instituir a Missão Rockefeller, cujas observações e trabalhos evidenciaram a necessidade de uma reformulação. Aguardemos o advento dessas alterações, com a confiança ditada pelos imperativos do bom entendimento internacional. E tudo indica que essa intercooperação será aperfeiçoada e dinamizada".

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