sábado, 2 de novembro de 2019

Eros e Civilização  -  Herbert Marcuse
A proposição de Sigmund Freud, segundo a qual a
civilização se baseia na permanente subjugação dos
instintos humanos, foi aceita como axiomática. A sua
interrogação, sobre se os benefícios da cultura teriam
compensado o sofrimento assim infligido aos indivíduos,
não foi levada muito a sério ainda menos quando o
próprio Freud considerou o processo inevitável e irreversível. A livre gratificação das necessidades
instintivas do homem é incompatível com a sociedade civilizada: renúncia e dilação na satisfação constituem
pré-requisitos do progresso. Disse Freud: A felicidade não é um valor cultural . A felicidade deve estar
subordinada à disciplina do trabalho como ocupação integral, à disciplina da reprodução monogâmica, ao
sistema estabelecido de lei e ordem. O sacrifício metódico da libido, a sua sujeição rigidamente imposta às atividades
e expressões socialmente úteis, é cultura. O sacrifício compensou bastante: nas áreas
tecnicamente avançadas da civilização, a conquista da natureza está praticamente concluída, e mais necessidades
de um maior número de pessoas são satisfeitas numa escala nunca anteriormente vista. Nem a mecanização e
padronização da vida, nem o empobrecimento mental, nem a crescente destrutividade do atual progresso,
fornecem bases suficientes para pôr em dúvida o  princípio que tem governado o progresso da civilização
ocidental. O contínuo incremento da produtividade torna cada vez mais realista, de um modo constante, a promessa de uma vida ainda melhor para todos.
Contudo, o progresso intensificado parece estar vinculado a uma igualmente intensificada ausência de
liberdade. Por todo o mundo da civilização industrial, o domínio do homem pelo homem cresce em âmbito e
eficiência. Essa tendência tampouco se apresenta como uma regressão incidental, transitória, na senda do
progresso. Os campos de concentração, extermínios em massa, guerras mundiais e bombas atômicas
não são recaídas no barbarismo , mas a implementação irreprimida das conquistas da ciência moderna, da
tecnologia e dominação dos nossos tempos. E a mais eficaz subjugação e destruição do homem pelo homem
tem lugar no apogeu da civilização, quando as realizaçõesmateriais e intelectuais da humanidade parecem permitir a
criação de um mundo verdadeiramente livre.
Esses aspectos negativos da cultura hodierna podem
muito bem indicar o obsoletismo das instituições
estabelecidas e a emergência de novas formas de
civilização: a repressão é, talvez, mantida com tanto mais
vigor quanto mais desnecessária se torna. Se, com efeito, deve pertencer à essência da civilização como tal, então a
interrogação de Freud quanto ao preço da civilização não
teria qualquer sentido pois não haveria alternativa.
Mas a própria teoria de Freud fornece-nos razões
para rejeitarmos a sua identificação de civilização com
repressão. Com base em suas próprias realizações teóricas,
o exame do problema deve ser reaberto. A relação entre
liberdade e repressão, produtividade e destruição, dominação e progresso, constituirá realmente o princípio
de civilização? Ou essa inter-relação resultará unicamente
de uma organização histórica específica da existência
humana? Em termos freudianos, o conflito entre princípio
de prazer e princípio de realidade será irreconciliável num
grau tal que necessite a transformação repressiva da
estrutura instintiva do homem? Ou permitirá um conceito
de civilização não-repressiva, baseada numa experiência
fundamentalmente diferente de ser, numa relação
fundamentalmente diferente entre homem e natureza, e em
fundamentalmente diferentes relações existenciais?
A noção de uma civilização não-repressiva será
examinada, não como uma especulação abstrata e utópica. Acreditamos que o exame está justificado com base em
dois dados concretos e realistas: primeiro, a própria
concepção teórica de Freud parece refutar a sua firme
negação da possibilidade histórica de uma civilização nãorepressiva; e, segundo, as próprias realizações da
civilização repressiva parecem criar as pré-condições para
a gradual abolição da repressão. Para elucidarmos esses
dados, tentaremos reinterpretar a concepção teórica de
Freud, segundo os termos de seu próprio conteúdo sócio- histórico.