quinta-feira, 12 de setembro de 2019

A PRESENÇA DO POSITIVISMO NA CONTRACULTURA

RESUMO:
O presente estudo visa resgatar o movimento ocorrido na década de 60, como uma reação da juventude contra a ordem tradicional notadamente conservadora.  A participação dos estudantes iria atrair a atenção de considerável parcela da intelectualidade cujas ideias e trabalhos se encontravam em sintonia com a rebelião dos jovens. A presença do trabalho do filósofo Herbert Marcuse com o viés da psicanálise freudiana irá entrar em sintonia com o positivismo de Augusto Comte trazendo à baila a dicotomia: estática/dinâmica relembrando o aspecto básico da Teoria dos Instintos de Sigmund Freud, destacando o instinto de morte (Thanátos) e o instinto de vida (Eros), revivendo a tese de uma sociedade/civilização produzida pela repressão dos instintos primários, cuja liberação iniciada nos anos 60 poderá produzir uma regressão dessa sociedade com reflexos na própria formação psicológica do homem. Deixando claro que a liberdade total e sem freios é utópica e vedada ao homem para a sua própria conservação.

INTRODUÇÃO
A década de 60 foi um marco histórico que trouxe alterações revolucionárias para o nosso comportamento, e em todos os segmentos do mundo moderno. Ela vivenciou o positivismo de Auguste Comte aplicado na vida prática, mostrando o que foi a ruptura da estática e da dinâmica. A revolução contestadora dos jovens que teve por finalidade trazer ao debate o papel da ordem tradicional que, com o seu modelo conservador, obstava o progresso. É sugestivo o tom que deu início a greve estudantil na França, conforme nos relata a Wikipédia:
O movimento de maio de 1968, na França, tornou-se ícone de uma época onde a renovação dos valores veio acompanhada pela proeminente força de uma cultura jovem. A liberação sexual, a Guerra no Vietnã, os movimentos pela ampliação dos direitos civis compunham toda a pólvora de um barril construído pela fala dos jovens estudantes da época. Mais do que iniciar algum tipo de tendência, o Maio de 68 pode ser visto como desdobramento de toda uma série de questões já propostas pela revisão dos costumes feita por lutas políticas, obras filosóficas e a euforia juvenil.
No dia 2 de maio de 1968, estudantes franceses da Universidade de Nanterre fizeram um protesto contra a divisão dos dormitórios entre homens e mulheres. Na verdade, esse simples motivo vinha arraigado de uma nova geração que reivindicava o fim de posturas conservadoras. Aproveitando do incidente, outros universitários franceses e grupos político partidários resolveram engrossar fileiras dos protestos contra os problemas vividos na França. Com a cobertura televisiva, o episódio francês ficava conhecido pelo mundo.
É de se perceber que a ordem que elevava a mulher à condição de santa: uma
divindade doméstica, guardiã da família e dos seus valores, lhe impunha também o papel que era conditio sine qua non, para a sua aceitação na família e na sociedade. Nesse contexto ganhava extremado valor a sua religiosidade e virgindade. Esta, alçada à condição de honra, como a vestal dos cultos religiosos da Religião do Fogo Sagrado e dos Deuses Lares. Desta forma, ela era intocável antes do casamento por força do pecado e só o casamento tinha o poder conferido pela religião para conceder a sua ablução, liberando o sexo para a perpetuação da espécie, acrescido da necessidade estatal de braços para o trabalho e para a defesa em caso de guerra.

DESENVOLVIMENTO
No Brasil, os primeiros acordes vieram com a Revolução dos Tenentes em 1922.
Esta tinha por ideal implantar o ‘renascimento’ no solo brasileiro, afastando o conservadorismo caracterizado na política do café-com-leite. Esta política, de cunho eminentemente agrícola, consagrada nos acordos de Taubaté, comandava o País através da Presidência da República, formada com o revezamento entre os Estados de Minas Gerais e São Paulo. Ela era refratária à industrialização do Brasil, inviabilizando o seu progresso. A revolução fracassou, mas deixou o seu ideal na história com mudanças de vulto, dentre as quais a Semana da Arte Moderna que reflete o pensamento avançado dos jovens oficiais do Exército no distante ano de 1922. O seu ideal voltaria à tona nos anos 30, quando uma dissenção interna iria provocar a ruptura do acordo político entre Minas e São Paulo, conduzindo Getúlio Vargas ao poder. O ideal da revolução dos tenentes ressurgia agora amparado pela força de todo o Exército. O tenentismo renascia no getulismo.
            Os tempos mudavam e no plano mundial acontecia algo inovador. A geração dos anos 50, com o seu estilo byroniano, foi marcada pela angústia e o desalento com o mundo que a cercava. A dança do rock and roll que apareceu no final dos anos 40, cresceu e ganhou destaque entre os jovens. Nos EE.UU. surgiu o estilo black power, os beatniks e  o partido dos panteras-negras. A luta pelos direitos civis tinha início numa sociedade severamente discriminadora com o viés racista.
Todavia, foi na década de 60 que a nova geração  impôs  o fim da hegemonia da Estática sobre a Dinâmica num mundo idealizado por Auguste Comte, com a sua filosofia positivista. Muito mais do que o rock and roll e a utopia do movimento Hippie, os anos 60 foi a rebelião dos jovens contra a camisa-de-força que lhes era imposta por sucessivas gerações ao longo da história. Esposando a filosofia de Herbert Marcuse, os anos 60, foi um marco da resistência contra o sistema capitalista, visto como o símbolo maior da opressão à classe operária.
O movimento dos Beatniks foi o elo-de-ligação entre a geração byroniana dos anos 50 e a geração dos  anos 60, marcada pelos acordes da banda inglesa The Beatles, e mantendo a influência da corrente filosófica do existencialismo. Uma impulsionou a outra.  E a contestação que começa em casa ganha as ruas se unem sob um mesmo ideal, ganha força e cresce. A música dos Beatles e o modo peculiar dos seus componentes dão o tom para a nova onda que tinha início. Aliados a eles e no mesmo diapasão, está a banda dos Rolling Stones, com um som mais agressivo e contundente. Eles fazem coro ao movimento e, juntamente com a banda The Doors, impulsionam os costumes com os seus cabelos longos, botas de salto alto e tudo mais que irá fomentar a discórdia entre a juventude  e a ordem tradicional.
Podemos dizer que a juventude dos anos 60 se libertou do domínio da ordem tradicional e do seu comando. Se isso foi um marco para a liberdade cultural  e tecnológica, também significou um excesso libertário nos costumes, notadamente, com o sexo. A visão sobre o mundo sexual sofreu sensíveis transformações que, até hoje escandaliza as mentes conservadoras que não aderiram às ideias daquela época.
Freud sustenta que a civilização é obra da repressão dos instintos. Ela seria uma sublimação. Em sua obra “O futuro de uma ilusão”, ele diz:
“A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima da sua condição animal e difere da vida dos animais apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para afastar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível”.
Mais adiante, ele acrescenta:
“Todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se suponha que esta constitui um objeto de interesse humano universal  ...  A civilização, portanto, tem de ser defendida contra o individuo, e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a esta tarefa.”
Ainda ele:
“As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e  tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para a sua aniquilação.”
“Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que, imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição e à sua fruição”.
“Parece antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto.”
Acho que se tem de levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e,  portanto,  anti-sociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana.”
Essa tendência destrutiva que marca a grande maioria da humanidade, está presente no super-homem (übermensch) de Nieszche. Segundo ele, “O Estado é uma prudente instituição para a defesa dos indivíduos um contra o outro; se se exagera seu enobrecimento, o individuo acabará por ser enfraquecido por ele, e mesmo dissolvido.” A identificação do pensamento freudiano com o nietszcheriano nos soa evidente. A extensão do conceito freudiano na filosofia, notadamente, a sua Teoria dos Instintos, se dará com Herbert Marcuse na sua obra “ Eros e a Civilização”. É Marcuse que irá decompor no campo filosófico o que Freud captou com a sua incomparável argúcia científica. Diz Marcuse, a título de ilustração da sua importante obra:
“Segundo Freud, a história do homem é a história da sua repressão. A cultura coage tanto a sua existência social como a biológica, não só partes do ser humano, mas também sua própria estrutura instintiva. Contudo, essa coação é a própria precondição do progresso. Se tivessem liberdade de perseguir seus objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a associação e preservação duradoura: destruiriam até aquilo a que se unem ou em que se conjugam. O Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua réplica fatal, o instinto de morte. Sua força destrutiva deriva do fato deles lutarem por uma gratificação que a cultura não pode consentir: a gratificação como tal e como um fim em si mesma, a qualquer momento. Portanto, os instintos têm de ser desviados de seus objetivos, inibidos em seus anseios.”
Na obra “O mito da liberdade”, Skinner deixa claro que a liberdade total é algo utópico e inatingível. Diz ele:
“A luta do homem pela liberdade não se deve à vontade de ser livre, mas a certos processos de comportamento característicos do organismo  humano, cujo principal efeito é evitar ou fugir dos chamados aspectos “adversos” do ambiente.”
“A liberdade... tem sido forçada a tachar todo controle como errado, e a apresentar deformadamente muitas das vantagens adquiridas de um ambiente social. Está despreparada para o próximo passo, que não consistirá em libertar os homens do controle, mas sim em analisar e modificar as espécies de controle a que se acham submetidos”.

CONCLUSÃO
O que resta evidenciado é que a liberdade  total é  inacessível ao homem, enquanto ser civilizado, caso ele a consiga, haverá uma regressão que o conduzirá ao estado animal  de onde proveio.
            Rousseau afirma na sua obra “O contrato social”, que “o homem nasce livre, e por toda parte encontra-se a ferros”.  Livre  ele nasce no estado natural, enquanto índio. A civilização lhe impõe regras que o condicionam a um processo de adequação do qual não se libertará enquanto viver. Thomas Hobbes, sustenta que é a competição que separa os homens e faz surgir a inveja, o ódio e finalmente a guerra. A única forma de manter a paz e garantir a sobrevivência da sociedade é por um pacto de cada homem com os demais, onde transferem o direito  do seu estado de liberdade e de se auto-governarem a uma única pessoa que se chama Estado, o grande Leviatã.

Ainda lembrando Marcuse:

“Não faz sentido falar sobre libertação a homens livres e somos livres se não pertencemos à minoria oprimida. E não faz sentido falar sobre repressão excessiva quando os homens e as mulheres desfrutam mais liberdade sexual que nunca. Mas a verdade é que essa liberdade e satisfação estão transformando a Terra em inferno. Por enquanto, o inferno ainda está concentrado em certos lugares distantes: Vietname, Congo, África do Sul, assim como nos guetos da sociedade afluente : no Mississippi e no Alabama, no Harlem. Esses lugares infernais iluminam o todo. É fácil e razoável ver neles, apenas, bolsões de pobreza e miséria numa sociedade em crescimento que é capaz de as eliminar gradualmente e sem uma catástrofe. Essa interpretação pode até ser realista e correta. A questão é: eliminadas a que preço não em dólares e centavos, mas em vidas humanas e em liberdade humana?” in Eros e Civilização

            Guy Debord, um dos ícones desse movimento, escreveu a obra A Sociedade do Espetáculo e nela retrata a tendência marxista que acaba dando o tom do movimento:

Embora na fase primitiva da acumulação capitalista “a economia política não visse no proletário senão o operário”que deveria receber o mínimo indispensável para a conservação da sua força de trabalho, sem nunca ser considerado “nos seus lazeres, na sua humanidade”, esta posição de ideias da classe dominante inverte-se assim que o grau de abundância atingido na produção de mercadorias exige um excedente de colaboração do operário. Este operário, completamente desprezado diante de todas as modalidades de organização e vigilância da produção, vê a si mesmo, a cada dia, do lado de fora, mas é aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma  delicadeza obsequiosa, sob o disfarce do consumidor. Então o humanismo da mercadoria os “lazeres e humanidade” do trabalhador, muito simplesmente porque a economia política pode e deve dominar, agora, também estas esferas, enquanto economia política. Assim “a negação da humanidade” é agora a negação da totalidade da existência humana.
                                    Em um trabalho publicado na Folha Online, em 30/04/2008,  Ébano Piancentini retrata o que foi aquela época:
                                   Em Maio de 68, a França concentrou em um mês as transformações sociais de uma década que já ocorriam nos Estados Unidos e em países da Europa e da América Latina.
Em 30 dias, os estudantes criaram barricadas, formando verdadeiras trincheiras de guerra nas ruas de Paris para confrontar a polícia. Mais do que isso, os jovens tiveram idéias e criaram frases tidas como as mais "ousadas" da segunda metade do século 20.
Em discursos nas ruas e nas universidades, em cartazes e muros, os estudantes franceses deixaram as salas de aula e se mobilizaram para dar a seus professores, pais e avós, e às instituições e ao governo "lições" sobre os "novos tempos, a liberdade e a rebeldia".

            Portanto, a segregação da ordem, ocorrida nos anos 60, vem conduzindo o progresso (dinâmica) a um estado cada vez mais distanciado e livre dos regulamentos de que nos alerta Freud, avançando para uma sociedade sem freios e sem limites, cujo final será a regressão ao Estado utópico e sem peias sociais, idealizado pelas comunidades hippies.




COMTE, Augusto – Curso de Filosofia Positiva – Coleção os Pensadores, vol. XXXIII, Abril Cultural, 1ª edição 1973 – São Paulo - SP

COULANGES, Fustel de – A Cidade Antiga, Rio de Janeiro, Ediouro, 1996 – Rio de Janeiro-RJ

SKINNER, Burrhus Frederic, O Mito da Liberdade, tradução de Leonardo Goulart e Maria Lúcia Ferreira Goulart, segunda edição brasileira: 1973, Bloch Editores, S.A, Rio de Janeiro - RJ

ROUSSEAU, Jean-Jacques – Do Contrato Social – Coleção os Pensadores, 2ª edição  -  São Paulo :  Abril Cultural, 1978.

DEBORD Guy,  A Sociedade do Espetáculo, tradução em português: www.terravista.pt/ilhadomel/1540, Fonte Digital Base, 2003, Guy Debord




MARCUSE, Herbert,  Eros e civilização, tradução de Álvaro Cabral, Zahar Editores, 6ª edição, Rio de Janeiro – RJ, 1975
FREUD, Sigmund, Coleção Os Pensadores,  , seleção de textos de Jayme Salomão: tradução de Durval Marcondes ... (et al.). – São Paulo : Abril Cultural, 1978.
NIETSZCHE, Friedrich Wilhelm, Coleção Os Pensadores, Obras incompletas; seleção de textos de  Gérard Lebrun ; tradução  e notas de Rubens Torres Filho, 2. 3d. – São Paulo : Abril Cultural, 1978.


https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2008/04/396741-entenda-o-maio-de-68-frances.shtml