A
PRESENÇA DO POSITIVISMO NA CONTRACULTURA
RESUMO:
O
presente estudo visa resgatar o movimento ocorrido na década de 60, como uma
reação da juventude contra a ordem tradicional notadamente conservadora. A participação dos estudantes iria atrair a
atenção de considerável parcela da intelectualidade cujas ideias e trabalhos se
encontravam em sintonia com a rebelião dos jovens. A presença do trabalho do
filósofo Herbert Marcuse com o viés da psicanálise freudiana irá entrar em
sintonia com o positivismo de Augusto Comte trazendo à baila a dicotomia:
estática/dinâmica relembrando o aspecto básico da Teoria dos Instintos de
Sigmund Freud, destacando o instinto de morte (Thanátos) e o instinto de vida
(Eros), revivendo a tese de uma sociedade/civilização produzida pela repressão
dos instintos primários, cuja liberação iniciada nos anos 60 poderá produzir
uma regressão dessa sociedade com reflexos na própria formação psicológica do
homem. Deixando claro que a liberdade total e sem freios é utópica e vedada ao
homem para a sua própria conservação.
INTRODUÇÃO
A
década de 60 foi um marco histórico que trouxe alterações revolucionárias para
o nosso comportamento, e em todos os segmentos do mundo moderno. Ela vivenciou o
positivismo de Auguste Comte aplicado na vida prática, mostrando o que foi a
ruptura da estática e da dinâmica. A revolução contestadora dos jovens que teve
por finalidade trazer ao debate o papel da ordem tradicional que, com o seu
modelo conservador, obstava o progresso. É sugestivo o tom que deu início a
greve estudantil na França, conforme nos relata a Wikipédia:
O
movimento de maio de 1968, na França, tornou-se ícone de uma época onde a
renovação dos valores veio acompanhada pela proeminente força de uma cultura
jovem. A liberação sexual, a Guerra no Vietnã, os movimentos pela ampliação dos
direitos civis compunham toda a pólvora de um barril construído pela fala dos
jovens estudantes da época. Mais do que iniciar algum tipo de tendência, o Maio
de 68 pode ser visto como desdobramento de toda uma série de questões já
propostas pela revisão dos costumes feita por lutas políticas, obras
filosóficas e a euforia juvenil.
No dia 2
de maio de 1968, estudantes franceses da Universidade de Nanterre fizeram um
protesto contra a divisão dos dormitórios entre homens e mulheres. Na verdade,
esse simples motivo vinha arraigado de uma nova geração que reivindicava o fim
de posturas conservadoras. Aproveitando do incidente, outros universitários
franceses e grupos político partidários resolveram engrossar fileiras dos
protestos contra os problemas vividos na França. Com a cobertura televisiva, o
episódio francês ficava conhecido pelo mundo.
É
de se perceber que a ordem que elevava a mulher à condição de santa: uma
divindade
doméstica, guardiã da família e dos seus valores, lhe impunha também o papel
que era conditio sine qua non, para a
sua aceitação na família e na sociedade. Nesse contexto ganhava extremado valor
a sua religiosidade e virgindade. Esta, alçada à condição de honra, como a
vestal dos cultos religiosos da Religião do Fogo Sagrado e dos Deuses Lares.
Desta forma, ela era intocável antes do casamento por força do pecado e só o
casamento tinha o poder conferido pela religião para conceder a sua ablução, liberando
o sexo para a perpetuação da espécie, acrescido da necessidade estatal de braços
para o trabalho e para a defesa em caso de guerra.
DESENVOLVIMENTO
No
Brasil, os primeiros acordes vieram com a Revolução dos Tenentes em 1922.
Esta
tinha por ideal implantar o ‘renascimento’ no solo brasileiro, afastando o
conservadorismo caracterizado na política do café-com-leite. Esta política, de
cunho eminentemente agrícola, consagrada nos acordos de Taubaté, comandava o
País através da Presidência da República, formada com o revezamento entre os
Estados de Minas Gerais e São Paulo. Ela era refratária à industrialização do
Brasil, inviabilizando o seu progresso. A revolução fracassou, mas deixou o seu
ideal na história com mudanças de vulto, dentre as quais a Semana da Arte
Moderna que reflete o pensamento avançado dos jovens oficiais do Exército no
distante ano de 1922. O seu ideal voltaria à tona nos anos 30, quando uma dissenção
interna iria provocar a ruptura do acordo político entre Minas e São Paulo,
conduzindo Getúlio Vargas ao poder. O ideal da revolução dos tenentes ressurgia
agora amparado pela força de todo o Exército. O tenentismo renascia no
getulismo.
Os tempos mudavam e no plano mundial
acontecia algo inovador. A geração dos anos 50, com o seu estilo byroniano, foi
marcada pela angústia e o desalento com o mundo que a cercava. A dança do rock
and roll que apareceu no final dos anos 40, cresceu e ganhou destaque entre os
jovens. Nos EE.UU. surgiu o estilo black power, os beatniks e o partido dos panteras-negras. A luta pelos
direitos civis tinha início numa sociedade severamente discriminadora com o
viés racista.
Todavia,
foi na década de 60 que a nova geração
impôs o fim da hegemonia da
Estática sobre a Dinâmica num mundo idealizado por Auguste Comte, com a sua
filosofia positivista. Muito mais do que o rock and roll e a utopia do
movimento Hippie, os anos 60 foi a rebelião dos jovens contra a camisa-de-força
que lhes era imposta por sucessivas gerações ao longo da história. Esposando a
filosofia de Herbert Marcuse, os anos 60, foi um marco da resistência contra o
sistema capitalista, visto como o símbolo maior da opressão à classe operária.
O
movimento dos Beatniks foi o elo-de-ligação entre a geração byroniana dos anos
50 e a geração dos anos 60, marcada
pelos acordes da banda inglesa The Beatles, e mantendo a influência da corrente
filosófica do existencialismo. Uma impulsionou a outra. E a contestação que começa em casa ganha as
ruas se unem sob um mesmo ideal, ganha força e cresce. A música dos Beatles e o
modo peculiar dos seus componentes dão o tom para a nova onda que tinha início.
Aliados a eles e no mesmo diapasão, está a banda dos Rolling Stones, com um som
mais agressivo e contundente. Eles fazem coro ao movimento e, juntamente com a
banda The Doors, impulsionam os costumes com os seus cabelos longos, botas de
salto alto e tudo mais que irá fomentar a discórdia entre a juventude e a ordem tradicional.
Podemos
dizer que a juventude dos anos 60 se libertou do domínio da ordem tradicional e
do seu comando. Se isso foi um marco para a liberdade cultural e tecnológica, também significou um excesso
libertário nos costumes, notadamente, com o sexo. A visão sobre o mundo sexual
sofreu sensíveis transformações que, até hoje escandaliza as mentes conservadoras
que não aderiram às ideias daquela época.
Freud
sustenta que a civilização é obra da repressão dos instintos. Ela seria uma
sublimação. Em sua obra “O futuro de uma ilusão”, ele diz:
“A
civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a
vida humana se elevou acima da sua condição animal e difere da vida dos animais
apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo
o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as
forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades
humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para afastar as
relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da
riqueza disponível”.
Mais
adiante, ele acrescenta:
“Todo
indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se suponha que esta
constitui um objeto de interesse humano universal ... A
civilização, portanto, tem de ser defendida contra o individuo, e seus
regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a esta tarefa.”
Ainda
ele:
“As
criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e tecnologia, que as construíram, também podem
ser utilizadas para a sua aniquilação.”
“Pensar-se-ia
ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de
insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos
instintos, de sorte que, imperturbados pela discórdia interna, os homens
pudessem dedicar-se à aquisição e à sua fruição”.
“Parece
antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao
instinto.”
Acho
que se tem de levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens
tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e anticulturais, e que, num
grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para
determinar o comportamento delas na sociedade humana.”
Essa
tendência destrutiva que marca a grande maioria da humanidade, está presente no
super-homem (übermensch) de Nieszche. Segundo ele, “O Estado é uma prudente
instituição para a defesa dos indivíduos um contra o outro; se se exagera seu
enobrecimento, o individuo acabará por ser enfraquecido por ele, e mesmo
dissolvido.” A identificação do pensamento freudiano com o nietszcheriano nos soa
evidente. A extensão do conceito freudiano na filosofia, notadamente, a sua
Teoria dos Instintos, se dará com Herbert Marcuse na sua obra “ Eros e a
Civilização”. É Marcuse que irá decompor no campo filosófico o que Freud captou
com a sua incomparável argúcia científica. Diz Marcuse, a título de ilustração
da sua importante obra:
“Segundo
Freud, a história do homem é a história da sua repressão. A cultura coage tanto
a sua existência social como a biológica, não só partes do ser humano, mas
também sua própria estrutura instintiva. Contudo, essa coação é a própria
precondição do progresso. Se tivessem liberdade de perseguir seus objetivos
naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a
associação e preservação duradoura: destruiriam até aquilo a que se unem ou em
que se conjugam. O Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua réplica fatal,
o instinto de morte. Sua força destrutiva deriva do fato deles lutarem por uma
gratificação que a cultura não pode consentir: a gratificação como tal e como
um fim em si mesma, a qualquer momento. Portanto, os instintos têm de ser
desviados de seus objetivos, inibidos em seus anseios.”
Na
obra “O mito da liberdade”, Skinner deixa claro que a liberdade total é algo
utópico e inatingível. Diz ele:
“A
luta do homem pela liberdade não se deve à vontade de ser livre, mas a certos
processos de comportamento característicos do organismo humano, cujo principal efeito é evitar ou
fugir dos chamados aspectos “adversos” do ambiente.”
“A
liberdade... tem sido forçada a tachar todo controle como errado, e a
apresentar deformadamente muitas das vantagens adquiridas de um ambiente
social. Está despreparada para o próximo passo, que não consistirá em libertar
os homens do controle, mas sim em analisar e modificar as espécies de controle
a que se acham submetidos”.
CONCLUSÃO
O que resta evidenciado é que a
liberdade total é inacessível ao homem, enquanto ser
civilizado, caso ele a consiga, haverá uma regressão que o conduzirá ao estado
animal de onde proveio.
Rousseau afirma na sua obra “O
contrato social”, que “o homem nasce livre, e por toda parte encontra-se a
ferros”. Livre ele nasce no estado natural, enquanto índio.
A civilização lhe impõe regras que o condicionam a um processo de adequação do
qual não se libertará enquanto viver. Thomas Hobbes, sustenta que é a
competição que separa os homens e faz surgir a inveja, o ódio e finalmente a
guerra. A única forma de manter a paz e garantir a sobrevivência da sociedade é
por um pacto de cada homem com os demais, onde transferem o direito do seu estado de liberdade e de se
auto-governarem a uma única pessoa que se chama Estado, o grande Leviatã.
Ainda
lembrando Marcuse:
“Não
faz sentido falar sobre libertação a homens livres e somos livres se não
pertencemos à minoria oprimida. E não faz sentido falar sobre repressão
excessiva quando os homens e as mulheres desfrutam mais liberdade sexual que
nunca. Mas a verdade é que essa liberdade e satisfação estão transformando a
Terra em inferno. Por enquanto, o inferno ainda está concentrado em certos
lugares distantes: Vietname, Congo, África do Sul, assim como nos guetos da
sociedade afluente : no Mississippi e no Alabama, no Harlem. Esses lugares
infernais iluminam o todo. É fácil e razoável ver neles, apenas, bolsões de
pobreza e miséria numa sociedade em crescimento que é capaz de as eliminar
gradualmente e sem uma catástrofe. Essa interpretação pode até ser realista e
correta. A questão é: eliminadas a que preço não em dólares e centavos, mas em
vidas humanas e em liberdade humana?” in Eros
e Civilização
Guy Debord, um dos ícones desse
movimento, escreveu a obra A Sociedade do Espetáculo e nela retrata a tendência
marxista que acaba dando o tom do movimento:
Embora
na fase primitiva da acumulação capitalista “a economia política não visse no proletário senão o operário”que deveria
receber o mínimo indispensável para a conservação da sua força de trabalho, sem
nunca ser considerado “nos seus lazeres, na sua humanidade”, esta posição de
ideias da classe dominante inverte-se assim que o grau de abundância atingido
na produção de mercadorias exige um excedente de colaboração do operário. Este
operário, completamente desprezado diante de todas as modalidades de
organização e vigilância da produção, vê a si mesmo, a cada dia, do lado de
fora, mas é aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma delicadeza obsequiosa, sob o disfarce do
consumidor. Então o humanismo da
mercadoria os “lazeres e humanidade” do trabalhador, muito simplesmente
porque a economia política pode e deve dominar, agora, também estas esferas,
enquanto economia política. Assim “a negação da humanidade” é agora a negação
da totalidade da existência humana.
Em um trabalho publicado na Folha
Online, em 30/04/2008, Ébano Piancentini
retrata o que foi aquela época:
Em Maio de 68, a França concentrou em um mês as transformações
sociais de uma década que já ocorriam nos Estados Unidos e em países da Europa
e da América Latina.
Em 30
dias, os estudantes criaram barricadas, formando verdadeiras trincheiras de
guerra nas ruas de Paris para confrontar a polícia. Mais do que isso, os jovens
tiveram idéias e criaram frases tidas como as mais "ousadas" da
segunda metade do século 20.
Em
discursos nas ruas e nas universidades, em cartazes e muros, os estudantes
franceses deixaram as salas de aula e se mobilizaram para dar a seus
professores, pais e avós, e às instituições e ao governo "lições"
sobre os "novos tempos, a liberdade e a rebeldia".
Portanto, a segregação da ordem,
ocorrida nos anos 60, vem conduzindo o progresso (dinâmica) a um estado cada
vez mais distanciado e livre dos regulamentos de que nos alerta Freud,
avançando para uma sociedade sem freios e sem limites, cujo final será a
regressão ao Estado utópico e sem peias sociais, idealizado pelas comunidades
hippies.
COMTE,
Augusto – Curso de Filosofia Positiva – Coleção os Pensadores, vol. XXXIII, Abril
Cultural, 1ª edição 1973 – São Paulo - SP
COULANGES,
Fustel de – A Cidade Antiga, Rio de Janeiro, Ediouro, 1996 – Rio de Janeiro-RJ
SKINNER,
Burrhus Frederic, O Mito da Liberdade, tradução de Leonardo Goulart e Maria
Lúcia Ferreira Goulart, segunda edição brasileira: 1973, Bloch Editores, S.A,
Rio de Janeiro - RJ
ROUSSEAU,
Jean-Jacques – Do Contrato Social – Coleção os Pensadores, 2ª edição - São
Paulo : Abril Cultural, 1978.
DEBORD
Guy, A Sociedade do Espetáculo, tradução
em português: www.terravista.pt/ilhadomel/1540,
Fonte Digital Base, 2003, Guy Debord
MARCUSE,
Herbert, Eros e civilização, tradução de
Álvaro Cabral, Zahar Editores, 6ª edição, Rio de Janeiro – RJ, 1975
FREUD,
Sigmund, Coleção Os Pensadores, ,
seleção de textos de Jayme Salomão: tradução de Durval Marcondes ... (et al.).
– São Paulo : Abril Cultural, 1978.
NIETSZCHE,
Friedrich Wilhelm, Coleção Os Pensadores, Obras incompletas; seleção de textos
de Gérard Lebrun ; tradução e notas de Rubens Torres Filho, 2. 3d. – São
Paulo : Abril Cultural, 1978.