sábado, 25 de fevereiro de 2012

O que é a Acção Correcta?

Textos de J.Krishnamurti em Português


Auckland, Nova Zelândia, 1ª palestra 28 de março, 1934.
Amigos, penso que cada um de nós está aprisionado seja num problema religioso seja numa luta social ou num conflito económico. Cada um de nós está a sofrer pela falta de compreensão destes variados problemas, e tentamos resolver cada um deles por si; isto é, se têm um problema religioso, pensam que o vão resolver pondo de lado o problema económico ou social e centrando-se inteiramente no problema religioso, ou se têm um problema económico pensam que vão resolver esse problema económico limitando-se inteiramente a esse conflito específico. Ao passo que eu digo que não podem resolver estes problemas por si sós; não podem resolver o problema religioso por si só, nem o problema económico nem o problema social, a menos que vejam a interrelação entre os problemas religiosos, sociais e económicos.
Aquilo a que chamamos problemas são meramente sintomas, que aumentam e se multiplicam porque não agarramos a vida toda como uma coisa só, mas dividimo-la em problemas económicos, sociais ou religiosos. Se olharem para todas as variadas soluções que são oferecidas para os vários padecimentos, verão que lidam com os problemas em separado, em compartimentos estanques, e não tomam os problemas religiosos, sociais e económicos compreensivamente como um todo. Ora é minha intenção mostrar que enquanto lidarmos com estes problemas em separado apenas aumentamos o desentendimento, e portanto o conflito, e desse modo o sofrimento e a dor; até que lidemos com o problema social e com os problemas religiosos e económicos como um todo compreensivo, não dividido, mas de preferência vendo a ligação delicada e subtil entre aquilo que chamamos problemas religiosos, sociais ou económicos – até que vejam esta ligação real, esta ligação íntima e subtil entre os três, seja qual for o problema que possam ter, não o vão resolver. Apenas incrementarão a luta. Embora possamos pensar que resolvemos um problema, esse problema surge novamente de uma forma diferente, e assim vamos através da vida resolvendo problema após problema, luta após luta, sem compreender totalmente o pleno significado do nosso viver.
Portanto, para compreender esta ligação íntima entre aquilo a que chamamos problemas religiosos, sociais e económicos, tem que haver uma completa reorientação do pensamento – isto é, cada indivíduo tem que deixar de ser uma peça de engrenagem, uma máquina, seja na estrutura social seja na religiosa. Olhem e verão que a maior parte dos seres humanos são escravos, meras peças de engrenagem nesta máquina. Não são realmente seres humanos, apenas reagem a um meio estabelecido e por isso não existe verdadeira acção individual, pensamento individual; e para descobrir essa relação íntima entre todas as nossas acções, religiosas, políticas ou sociais, têm que pensar como indivíduos, não como um grupo, não como um corpo colectivo; e essa é uma das coisas mais difíceis de fazer, que os indivíduos saiam da sua estrutura social, ou religiosa, e a examinem com espírito crítico, para descobrir o que é falso e o que é verdadeiro nessa estrutura. E então verão que já não estão preocupados com um sintoma, mas estão a tentar descobrir a causa do próprio problema, e não apenas a lidar com os sintomas.
Talvez alguns de vocês digam no fim da minha palestra que nada lhes dei de positivo, nada em que possam claramente trabalhar, um sistema que possam seguir. Eu não tenho nenhum sistema. Penso que os sistemas são perniciosos, porque podem de momento aliviar os problemas, mas se simplesmente seguirem um sistema são escravos dele. Apenas substituem o velho sistema por um novo, o que não origina compreensão. O que origina compreensão não é procurar um novo sistema, mas sim descobrirem por si próprios, como indivíduos, não como uma máquina colectiva mas como indivíduos, o que é falso e o que é verdadeiro no sistema existente, e não substituir o velho sistema por um novo.
Ora, ser capaz de criticar, ser capaz de questionar, é o primeiro requisito essencial para qualquer homem pensante, para que possa começar a descobrir o que é falso e o que é verdadeiro no sistema existente, e por esse motivo nesse pensamento há acção, e não mera aceitação. Assim durante esta palestra, se quiserem compreender o que vou dizer, tem que haver espírito crítico. O espírito crítico é essencial. O questionamento é correcto, mas nós fomos treinados para não questionar, para não criticar, fomos cuidadosamente treinados para nos opormos. Por exemplo, se eu disser algo que não vão gostar – como o farei, espero – naturalmente começarão a opor-se, porque a oposição é mais fácil do que descobrir se o que digo tem algum valor. Se descobrirem que o que eu digo tem valor, então há acção, e por isso terão que alterar toda a vossa atitude perante a vida. Por esse motivo, como não estamos preparados para fazer isso, criámos uma hábil técnica de oposição. Isto é, se não gostarem de qualquer coisa que estou a dizer, apresentam todos os vossos preconceitos profundamente enraizados e obstruem-na, e se eu estiver a dizer algo que os possa magoar, ou que os possa aborrecer emocionalmente, refugiam-se nestes preconceitos, nestas tradições, neste pano de fundo; e reagem a partir desse pano de fundo, e a essa reacção chamam crítica. Para mim não é espírito crítico. É apenas oposição habilidosa, que não tem valor.
Ora bem, se forem todos Cristãos – e presumivelmente são todos Cristãos – talvez eu vá dizer algo que podem não compreender, e em vez de tentarem descobrir o que quero transmitir, imediatamente se refugiarão por trás das tradições, por trás dos preconceitos profundamente enraizados e das autoridades da ordem estabelecida, e a partir dessa fortaleza, na defensiva, atacarão. Para mim isso não é crítica: isso é uma maneira engenhosa de não actuar, de evitar a acção plena, completa.
Se quiserem entender o que vou dizer, pedia-lhes que fossem realmente críticos, não habilidosos na vossa oposição. Ser crítico requer muita inteligência. A crítica não é cepticismo, ou aceitação; isso seria igualmente estúpido. Se simplesmente dissessem, “Bem, eu sou céptico sobre o que diz”, isso seria tão estúpido como simplesmente aceitar. Ao passo que a verdadeira crítica consiste, não em transmitir valores, mas em tentar descobrir os verdadeiros valores. Não é assim? Se conferirem valores às coisas, se a mente conferir valores, então não estão a descobrir o mérito intrínseco da coisa, e a maior parte das nossas mentes está treinada para conferir valores. O dinheiro, por exemplo. Abstractamente o dinheiro não tem valor. Tem o valor que lhe damos. Isto é, se quiserem o poder que o dinheiro dá, então usam o dinheiro para ter poder, portanto estão a dar um valor a algo que inerentemente não tem valor; assim, da mesma maneira, se descobrirem e compreenderem o que vou dizer, têm que ter esta capacidade de crítica, que é realmente fácil se quiserem descobrir, se quiserem encontrar, não se disserem, “Bem, não quero ser atacado. Estou na defensiva. Tenho tudo o que quero, estou perfeitamente satisfeito.” Então, uma tal atitude é perfeitamente irremediável. Estão então aqui apenas por curiosidade – e a maioria provavelmente está – e o que eu vou dizer não terá significado, e por isso dirão que é negativo, nada construtivo, nada positivo.
Portanto por favor lembrem-se que esta tarde vamos descobrir, considerar em conjunto, quais são as coisas falsas e as verdadeiras na situação social e religiosa existente; e para fazer isso por favor não tragam continuamente os vossos preconceitos, sejam Cristãos, ou de qualquer outra seita, mas tenham antes esta atitude inteleigente e crítica, não só a respeito do que vou dizer, mas com respeito a tudo na vida, o que significa a cessação da procura de novos sistemas, e não a procura de um novo sistema que, quando encontrado, será de novo pervertido, corrompido. Na descoberta do falso e do verdadeiro nos sistemas social, religioso e económico – o falso e o verdadeiro que nós próprios criámos – nessa descoberta, impediremos as nossas mentes e corações de criar falsos ambientes nos quais provavelmente a mente será de novo aprisionada.
A maior parte de vocês está à procura de um novo sistema de pensamento, um novo sistema de economia, um novo sistema de filosofia religiosa. Porque procuram um novo sistema? Vocês dizem, “Estou insatisfeito com o antigo”, isto é, se estiverem a procurar. Ora eu digo, não procurem um novo sistema, mas em vez disso examinem o próprio sistema em que estão presos, e então verão que nenhum sistema de nenhuma espécie originará a inteligência criativa que é essencial para a compreensão da verdade ou Deus ou seja lá qual for o nome que gostam de lhe dar. Isso significa que não seguindo qualquer sistema vão descobrir a realidade eterna; mas só a vão encontrar quando vocês, como indivíduos, começarem a compreender o próprio sistema que edificaram através dos séculos, e nesse sistema descobrirem o que é verdadeiro e o que é falso.
Portanto por favor lembrem-se disso – que não lhes estou a dar um novo sistema de filosofia. Penso que estes sistemas são gaiolas para manter presa a mente. Não ajudam o homem, são apenas impedimentos. Estes sistemas são um meio de exploração. Ao passo que se vocês, como indivíduos, começarem a questionar, verão que nesse questionamento criam conflito, e a partir desse conflito compreenderão – não na mera aceitação de um novo sistema que é apenas outro soporífero que os adormece e os transforma em mais uma máquina.
Vamos portanto desocbrir o falso e o verdadeiro nos sistemas existentes – os sistemas da religião e da sociologia. Para descobrir o que é falso e o que é verdadeiro, temos de ver em que se baseiam as religiões. Ora, eu falo de religião como a forma cristalizada de pensamento que se tornou no mais elevado ideal da comunidade. Espero que acompanhem tudo isto. Isto é, as religiões tal como são, não como vocês gostariam que fossem. Tal como são, em que se baseiam? Qual é o seu fundamento? Quando olham, quando examinam e pensam realmente com espírito crítico sobre isso – não trazendo as vossas esperanças e preconceitos, mas quando realmente pensam sobre isso – verão que se baseiam no conforto, dando-lhes consolo quando estão a sofrer. Isto é, a mente humana está continuamente à procura de segurança, de uma posição de certeza, seja numa crença ou num ideal ou num conceito, e portanto estão continuamente a procurar uma certeza, uma segurança, em que a mente se refugie como conforto. Ora o que acontece quando estão continuamente à procura de segurança, protecção, certeza? Naturalmente isso gera medo, e quando há medo tem que haver conformidade. Por favor, não tenho tempo de entrar en detalhes. Fá-lo-ei nas minhas várias palestras, mas nesta quero pôr tudo concisamente, e se estiverem interessados podem ponderar sobre isto, e depois podemos discuti-lo em reuniões de perguntas e respostas.
Portanto as pretensas religiões conferem o padrão de conformidade à mente que procura segurança nascida do medo na busca de conforto; e onde há procura de conforto, não há compreensão. As nossas religiões em todo o mundo, no seu desejo de dar conforto, no seu desejo de os conduzir a um padrão específico, de os moldar, dá-lhes vários padrões, moldes, seguranças, através daquilo a que chamam fé. Essa é uma das coisas que exigem – fé. Por favor não interpretem mal. Não se adiantem a mim. Elas exigem fé, e vocês aceitam a fé porque ela lhes proporciona um refúgio do conflito da existência diária, da luta contínua, das preocupações, dores e sofrimentos. Portanto dessa fé, que tem que ser uma fé dogmática, nascem as igrejas, e daí são estabelecidas ideias, crenças.
Ora para mim – e por favor lembrem-se disto, quero que critiquem, não que aceitem – para mim todas as crenças, todos os ideais são um obstáculo porque os impedem de compreender o presente. Vocês dizem que as crenças, os ideais, a fé, são necessários como um farol que os orientará através da confusão da vida. Isto é, estão mais interessados em crenças, em tradição, em ideais e na fé, do que em compreender a própria confusão. Para compreenderem a confusão não podem ter uma crença, um preconceito; têm que olhar para ela completamente, agarrá-la com uma mente clara, com uma mente não corrompida, não com uma mente que está influenciada por preconceitos específicos a que chamamos um ideal. Portanto onde há uma procura de conforto, de segurança, tem que haver um padrão, um molde, no qual nos refugiamos, e por isso a preconceber o que deve ser Deus, e o que deve ser a verdade.
Ora para mim, existe uma realidade viva. Existe algo que devém eternamente, algo fundamental, real, duradouro, mas que não pode ser preconcebido; não requer crenças, requer uma mente que não esteja acorrentadada a um ideal tal como um animal está atado a um poste, mas que pelo contrário, requer uma mente que esteja continuamente a mover-se, a experimentar, nunca permanecendo. Eu afirmo que há uma realidade viva; chamem-lhe Deus, verdade, o que quiserem, coisa que é de muito pouca importância – e para compreenderem isso, é preciso haver suprema inteligência, e por isso não pode haver qualquer conformidade, mas antes o questionamento dessas coisas falsas e verdadeiras em que a mente se encontra aprisionada. E verão que a maior parte das pessoas, a maior parte de vocês são religiosamente propensos, estão à procura da verdade, e essa mesma procura indica que estão a fugir do conflito do presente, ou que estão insatisfeitos com a situação presente. Por isso tentam descobrir o que é real; isto é, deixam a situação que cria conflito e fogem e tentam descobrir o que é Deus, o que é a verdade. Por isso essa procura é a negação da verdade, porque estão a fugir – há evasão, desejo de conforto, de segurança. Por isso, quando as religiões se baseiam, como o fazem, na oferta de seguranças, tem que haver exploração; e para mim as religiões tal como são subsistem em nada mais do que numa séria de explorações. Aquilo a que chamamos os mediadores entre o nosso presente conflito e essa suposta realidade tornaram-se os nossos exploradores, e eles são os sacerdotes, os mestres, os professores, os salvadores; porque eu afirmo que só através da compreensão do conflito presente com todo o seu significado, com todas os seus delicados matizes – só assim podem descobrir o que é real, e ninguém os pode conduzir a isso.
Se ambos, o inquiridor e o professor, soubessem o que é a verdade, então ambos poderiam ir na sua direcção; mas o discípulo não pode saber o que é a verdade. Por isso a sua inquirição sobre a verdade só pode existir no conflito, não longe dele, e assim, para mim, qualquer professor que descreva o que é a verdade, o que é Deus, está a negar isso mesmo, esse algo incomensurável que não pode ser medido por palavras. A ilusão das palavras não lhes dá segurança, e a ponte das palavras não os pode conduzir a esse algo. É somente quando vocês, como indivíduos, se começarem a aperceber no conflito imenso, da causa, e por consequência da falsidade desse conflito, que descobrirão o que é a verdade. Ali existe a felicidade eterna, a inteligência; mas não nesta coisa espúria chamada espiritualidade que é apenas uma conformidade, conduzida pela autoridade através do medo. Eu afirmo que existe algo extremamente real, infinito; mas para o descobrir o homem não deve ser uma máquina imitativa, e as nossas religiões não são nada mais que isso. E além disso, as nossas religiões em todo o mundo mantêm as pessoas separadas. Isto é, vocês com os vossos preconceitos específicos, autodenominado-se Cristãos, e os Indianos com as suas crenças específicas, autodenominando-se Hindus, nunca se encontram. As vossas crenças mantêm-nos separados. As vossas religiões estão a mantê-los separados. “Mas”, dizem vocês, “se os Hindus pudessem ao menos tornar-se Cristãos, então haveria uma unidade”, ou os Hindus dizem, “Deixemos que se tornem todos Hindus.” Mesmo então há divisão, porque a crença necessita de uma divisão, uma distinção, e por esse motivo a exploração e a luta contínua da diferença de classes.
Dizemos que as religiões unem. Pelo contrário. Olhem para o mundo fraccionado em seitas pequenas e tacanhas, lutando umas contra as outras para aumentar o seu número de membros, a sua riqueza, as suas posições, as suas autoridades, pensando que elas são a verdade. Só há uma verdade, mas não podem chegar a ela através de nenhuma seita, através de nenhuma religião. Para descobrir o que é verdade na religião, e o que é falso, não podem ser uma máquina; não podem aceitar as coisas como elas são. Fá-lo-ão se estiverem satisfeitos, e se estão satisfeitos não me ouvirão, e a minha palestra será inútil. Mas se estão insatisfeitos ajudá-los-ei a questionar correctamente, e desse questionamento descobrirão o que é a verdade, e nessa descoberta do que é verdadeiro descobrirão como viver amplamente, completamente, extaticamente; não com esta constante luta, batalhando contra tudo para vossa própria segurança, à qual chamam virtude.
Mais uma vez, este medo que é criado através da procura de segurança, procura refúgio na sociedade. A sociedade nada mais é que a expressão do individual multiplicada por milhares. Afinal, a sociedade não é uma coisa misteriosa. É o que vocês são. É premente, controladora, dominadora, tortuosa. A sociedade é a expressão do indivíduo. Esta sociedade oferece segurança através da tradição, a que chamamos opinião pública. Isto é, a opinião pública diz que possuir, possuir bens, é perfeitamente ético, moral, e dá-lhes distinção neste mundo, confere-lhes honras; vocês são pessoas notáveis neste mundo. É isso que, tradicionalmente, é aceite. É essa a opinião que criaram como indivíduos, porque é isso que vocês procuram. Todos vocês querem ser alguém no estado, seja Sir Qualquer Coisa ou Lord, e todo o resto, como vocês sabem, que se baseia na possessividade, nas posses; e isso tornou-se moral, verdadeiro, bom, perfeitamente cristão, ou perfeitamente hindu. É a mesma coisa. Ora nós chamamos a isso moralidade. Chamamos moralidade ao ajustamento a um padrão. Por favor, não estou a pregar o contrário disso. Estou a mostrar-lhes a falsidade disso, e se quiserem descobrir actuarão, não procurarão o reverso. Isto é, vocês consideram as posses, já sejam a vossa mulher, os vossos filhos, os vossos bens, vocês consideram isso perfeitamente moral. Agora suponham que tinha nascido uma outra sociedade em que as posses fossem más, onde esta ideia de possessividade fosse eticamente proibida – que entrasse na vossa mentalidade como a possessividade entra agora pelas circunstâncias, pela situação, pela opinião. Então a moralidade perde todo o seu significado, a moralidade é então uma mera conveniência. Não a percepção correcta das coisas, mas o engenhoso ajuste às circunstâncias – a que chamam moralidade. Suponham que querem, como indivíduos, não ser possessivos, vejam o que têm que combater! Todo o sistema da sociedade não é senão possessividade. Se o compreendessem e não fossem levados pelas circunstâncias que não são chamadas morais, então vocês, como indivíduos, teriam que começar a afastar-se desse sistema voluntariamente, e não teriam que ser levados como cordeiros a aceitar a moralidade da não-possessividade.
Actualmente são forçados quer gostem quer não, quer pensem que é sensato ou não; são forçados pelas situações, pelo meio que criaram, porque são ainda possessivos, e agora talvez apareça um outro sistema que os leve ao oposto – a ser não-possessivos. Certamente não é moralidade; é apenas timidez ser forçado pelo meio a ser possessivo ou não-possessivo. Ao passo que, para mim, a verdadeira moralidade consiste em compreender totalmente o absurdo da possessividade e combatê-la voluntariamente; e não ser conduzido de uma maneira ou de outra.
Agora, se olharem, esta sociedade está baseada na consciência de classes que é mais uma vez a consciência da segurança. Da mesma maneira que as crenças se tornam em religiões, também as posses se tornam na expressão da nacionalidade. Da mesma maneira que as crenças separam as pessoas, condicionam as pessoas, mantêm-nas separadas, também a possessividade, expressando-se como consciência de classes e tornando-se em nacionalidade, mantém as pessoas separadas. Isto é, toda a nacionalidade se baseia na exploração da maioria pela minoria para seu próprio benefício através dos meios de produção. Essa nacionalidade, através do instrumento do patriotismo, é um processo de guerra. Todas as nacionalidades, todos os países soberanos, têm que se preparar para a guerra; é o seu dever, e não adianta serem pacifistas e ao mesmo tempo falar de patriotismo. Não podem falar de fraternidade, e depois falar sobre Cristianismo, porque isso nega-a; não mais aqui que na Índia, ou em qualquer outro país. Na Índia podem falar sobre Hinduísmo e dizer que somos um só, que toda a humanidade é uma só. São apenas palavras – hipocrisia.
Portanto todas as nacionalidades são um processo de guerra. Quando falava na Índia, disseram-me (presentemente os Hindus estão a travessar uma fase dessa doença do nacionalismo), “Olhemos primeiro pelo nosso país porque há tanta gente a morrer de fome; depois podemos falar sobre a unidade da humanidade”, que é a mesma coisa de que falam aqui. “Protejámo-nos e depois falaremos sobre unidade, fraternidade, e todo os resto.” Ora, se a Índia está realmente preocupada com o problema da fome, ou se vocês estão realmente preocupados com o problema do desemprego, não podem lidar apenas com o problema de desemprego da Nova Zelândia; é um problema humano, não um problema de um grupo específico chamado Nova Zelândia. Não podem resolver o problema da fome como um problema Indiano, ou como um problema Chinês, ou o problema do desemprego como um problema Inglês, ou Alemão, ou Americano, ou Australásio, mas têm que lidar como ele como um todo; e só podem lidar com ele como um todo quando não forem nacionalistas, e não forem explorados através do processo de patriotismo. Vocês não são patriotas todas as manhãs quando acordam. Só são patriotas quando os papéis dizem que têm que o ser, poque têm que conquistar o vosso próximo. Somos por isso bárbaros, e não os que invadem o vosso país. O bárbaro é o patriota. Para ele o seu país é mais importante que a humanidade, que o homem; e eu digo-vos que não resolverão os vossos problemas, este problema económico e de nacionalidade, enquanto forem Novo Zelandeses. Só o resolverão quando forem seres humanos verdadeiros, livres dos preconceitos nacionalistas, quando deixarem de ser possessivos, e quando a vossa mente não estiver dividida pelas crenças. Então poderá haver verdadeira unidade humana, e então o problema da fome, o problema do desemprego, o problema da guerra, desaparecerá, porque vocês considerarão a humanidade como um todo e não como algum povo específico que quer explorar outro povo.
Vêem portanto o que está a dividir o homem, o que está a destruir a verdadeira glória de viver na qual, unicamente, podem encontrar essa realidade viva, essa imortalidade, esse extâse; mas para a encontrar têm que ser em primeiro lugar indivíduos. Isso significa que têm que começar a compreender, e por consequência a agir, para descobrir o que é falso no sistema existente, e assim, como indivíduos, formarão um núcleo. Não podem alterar as massas. O que são as massas? Vocês próprios multiplicados. Esperam que as massas actuem, esperando que por algum milagre haja uma mudança completa do dia para a noite, porque não pensam, não querem agir. Enquanto esta atitude de espera existir, haverá cada vez maior luta, cada vez mais sofrimento, falta de compreensão; a vida torna-se uma tragédia, algo sem valor. Ao passo que, se vocês, como indivíduos, agirem voluntariamente porque querem compreender e descobrir, então tornar-se-ão responsáveis, então não se tornarão reformadores, então haverá uma mudança completa, não baseada na possessividade, nas distinções, mas na verdadeira humanidade na qual há afecto, há pensamento, e por isso um êxtase de viver.
Textos de J.Krishnamurti em Português

NAT KING COLE

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

domingo, 12 de fevereiro de 2012

SEIS MESES DEPOIS

CHICO ANISIO


Guido pertencera ao corpo (e corpo é o termo certo) de Polícias
Especiais, de motocicleta Harley Davidson e chapeuzinho vermelho.
Mesmo neste agrupamento de homens-touros, chegava a se destacar.
— O Guido é um trator — diziam seus colegas de corporação, num
misto de orgulho e inveja.
Um "D-14" da Caterpillar, movido a gemada matinal, que não
dispensava, e engrossado pela ginástica que todos os dias suportava
para se pôr em condições de fraturar mandíbulas e clavículas,
nas porradinhas que dava a cada batida pelos antros do crime.
Às cinco e meia, quando o sol apenas começava a botar a testa
lá longe, quem chegasse à Praia do Inferno, já o encontrava em
meio à centésima flexão. O preparo físico era sua obsessão, e tinha
que ser assim, porque aí acabavam as virtudes. Do corpo para a
mente a diferença era a do preto para o branco. Feito uma coisa
que fosse parida por um bicho, em parceria com gente.
Diariamente media o bíceps e o tórax, crendo ainda ser possível
aumentar aquela estupidez de musculatura, um centímetro que
fosse.
A namorada não era maior do que uma menina. Um metro e cinqüenta,
medidos até com boa vontade, e o peso de um catálogo. Os
amigos brincavam, chamando aquele namoro de "tentativa de homicídio",
conceito que não podia ser encarado como mentiroso. Os dois,
quando juntos, pareciam um PI traduzido: 3,1416. Ela era a vírgula.
Ele a chamava de Tina, que Albertina — o nome da peça — lhe
soava como nome de portuguesa.
— "Daquelas de perna cabeluda e mata no sovaco" — explicava
aos colegas, entremeando as palavras da frase idiota com sorrisos
alvares.
Guido podia fazer a folga de um guindaste do cais, mas não tinha
capacidade cultural de substituir um bicheiro.
Do fim da PE em diante Guido passou a ser encontrado todas as
noites — menos segunda, que era folga — à porta de uma boate, em
Copacabana, onde o serviço era tão maneiro que o que mais lhe exigiam
era, vez por outra, dar uns tapinhas nos fregueses. Mas era
tapa em bêbado, não em bandido.
Se por um lado isso tranqüilizava Tina e amansava a barra da
vida de Guido, por outro foi desastroso.
Entrou na roda viva da vida do boêmio: acordava na hora do almoço,
almoçava na hora do lanche, jantava na hora de dormir e dormia
na hora de acordar. Esse ritmo de vida não favorece os músculos.
E, daí, eles foram discretamente sendo expulsos pelas banhas
que chegavam pedindo vaga. Principalmente os da barriga. Dois anos
depois era outro. Como se lhe tivessem inflado, sabe-se lá por onde.
Antes, Guido-touro; hoje, Guido-boi — homenagem póstuma à castração
muscular.
No Beco da Fome, além da cervejinha acompanhando o ragu, já
exigia "uma" para abrir o apetite. E deu de fumar. Deste modo, em
24 meses, não mais, o "D-14" se fez "D-8" ou menos.
Foi quando apanhou pela primeira vez.
Bigode era o apelido do que bateu. Era, igualmente, leão-dechácara
de uma boate — a única que não fechava às segundas-feiras.
Quando Tina pediu para ir a uma boate, Guido não a podia levar
a outra. Folgava no dia em que apenas a boate do Bigode abria as
portas. Não sei se os motivos foram bastante fortes para uma briga,
mas o pau comeu.
— Você pensa que é o quê?
— Não folga, que eu te cubro.
— Tem que ser muito homem.
— Então vem, que tu encontra.
— Olha que eu te dou uma porrada.
— Dá uma, leva duas.
Ou não aconteceu o bate-boca. Mas — contou quem viu — de um
momento para outro Guido fez referência à esposa do pai do Bigode,
e o uppercut saiu. Seco, curto e grosso. Ponta de queixo. 135 quilos
desabaram sobre o que na boate ainda insistiam em chamar de
tapete com uma surpreendente ausência de barulho.
— Levanta o homem.
— Levantar como? Ele pesa uma tonelada.
— Que pancada!
— Pegou no queixo. E tu notou? Quando ele caiu nem fez barulho.
— Foi as banha que amorteceu.
Com esforço — quatro ajudando — foi levado para fora e depositado
no banco da rua. Tina sentia-se culpada. Cuidou de arranjar
explicação para a derrota inusitada.
— Ele te pegou desprevenido.
— Tu viu, né? — perguntou Guido numa demonstração de ter aceito
a desculpa que a noiva inventara. — Eu vou pegar o Bigode, tu
vai ver. E vou pegar "às traição", como ele me pegou, aquele safado.
Não fora nada "às traição", já que o bate-boca eliminava esta
possibilidade. E, mesmo admitindo-se que não tivessem trocado palavras,
é indiscutível que, a partir do momento em que se puseram
frente a frente, com sangue nos olhos e beiços roxos, nada que acontecesse
a seguir podia ser levado em conta de "às traição".
Foi lindo e triste, feito incêndio. O uppercut, de uma perfeição
de Rocky Marciano, e a queda, parecia a de um prédio desabando.
Lindo o soco, triste a queda.
— Ele merecia, pra deixar de ser folgado — já começou a comentar
a voz do povo, o que nem era verdadeiro. Mas o mundo é uma
selva: ao vencedor, os louros; ao vencido, as pedras.
— Não te falei sempre? É frouxão. Só tem tamanho e safadeza.
— Um amigo meu me contou que ele é mesmo meio covarde. Numa
batida, na Favela do Esqueleto, um negrão engrossou com ele, e ele
botou o galho dentro.
— Agora, o Bigode...
E os elogios ao vencedor deslizavam como se descessem de um
tobogã de mil léguas.
Guido chorou. Olhava-se no espelho. "Como pode? Como é que um
troço desse acontece? Tá certo isso? Num homem como eu alguém pode
bater? Existe? Um cara parra como eu, levar uma bomba e cair? Cair?
Mas isto não vai ficar assim".
Ficou de perfil para xingar a barriga, que já quase cobria a
fivela do cinto. Estufou o tórax e já não percebeu a diferença —
outrora marcante — dos músculos. Fez pose de Mr. América, e o bíceps
parecia que se recusava a aparecer. Ali estava a razão.
— Estou fora de forma.
Era isso. E a boate era a responsável. A noite foi feita pra
dormir, não para tomar conta de bêbado.
— Babá de cachaceiro, é isso o que eu sou!
E, além de parar com a bebida, uma decisão que só toma quem é
homem!
— Vou parar com essa merda de cigarro.
Primeira providência: pedir as contas na boate. Foi ser massagista
de um time de subúrbio. Depois a rentrée na Praia do Inferno,
onde as flexões chegaram a ser duzentas. Não se soube mais dele
no Beco da Fome, nem no Grego, da Barata Ribeiro. A barriga fugia,
e o corpo voltava a ficar como o do tempo da PE. A cor que a
noite deixa no rosto deu lugar a um saudável bronzeado. Parecia um
cacique.
Foram seis meses de treinamento, repouso, vegetais, vitaminas,
ginástica e pouco amor. Tina entendia que agora não podia ser mais
todos os dias, mas apenas de vez em quando. O touro ia voltar à
arena. Que viessem Dominguim e Manolete e Paco Camino e El Cordobés.
Touro, na ponta dos cascos, com sangue na boca e fumaça nas
narinas.
Não tinha contado nada a ninguém, e esta é a explicação, para
que somente Tina soubesse que era chegada a hora da desforra.
Dormiu cedo na véspera. Pela manhã tomou uma gemada reforçada,
almoçou rosbife e salada de batatas, pouco líquido, dormiu à tarde.
Estava concentrado.
O táxi parou à porta da boate do Bigode, era meia-noite e bocadinho.
Chegava à mesma hora em que chegara na noite fatal. Queria
repetir tudo, igual. Até Tina estava com ele. Só que desta vez
não ia pedir mesa, ia pedir revanche.
Olhou o porteiro, como se o simpático negrinho fosse um inimigo.
— Diga ao Bigode que o Guido está aqui. Diga que eu vim arrebentar-
lhe os cornos:
— O Bigode tá de folga.
Pronto. Com essa ele não contava. Mas não foi esta pequena decepção
que o arrefeceu.
— De araque. Nessa boate não tem folga.
— A boate não fecha, mas, às quartas, o leão é o Biju. Serve o
Biju?
Não servia. O Biju, ele nem conhecia. Ele queria o Bigode, aquele
filho das unhas do uppercut "às traição". Mas o Biju sabia
quem ele era.
— Você não é o Guido, da PE? Prazer. Biju.
— Não tenho nada contra si. Eu vim aqui pra pegar o Bigode de
pau. Cadê o Bigode?
— Ele folga às quartas.
— Onde ele mora?
— Na Rodolfo Dantas, perto de onde era o Jirau — explicou o
negrinho porteiro.
— Então liga pra casa dele e diz que o Guido tá aqui. Diz que
eu vim pra dar um cacete nele.
Não houve quem conseguisse tirar isso da cabeça do touro ferido.
Nem pedido nem conselho. E tantos eram os conselhos e os pedidos,
que a própria Tina já admitia a desistência como um bom negócio.
— Deixa isso pra lá, Guido.
— Me larga! — e empurrou a noiva sobre o balcão.
Já havia raiva, além do ranço, e isso era muito bom. Passava a
mão no queixo seguidamente, como se esse gesto o ajudasse a lembrar
o uppercut seco, curto e grosso. E bem que ajudava.
— Liga pro Bigode -— ameaçou, segurando o negrinho da portaria
pelo colarinho da farda. — Liga pro Bigode, antes que eu te dê uma
bomba.
Foi o gerente quem telefonou.
Bigode dormia desde nove e meia da noite. Acordou quando o telefone
chamava pela décima vez.
— Alô — disse a voz rouca e potente que açoitou os ouvidos do
gerente.
— Bigode? Aqui é o Pacheco, da boate.
— Que é que manda, Seu Pacheco? O Biju faltou?
— Não. Biju tá aqui.
— Então, pra que tá me acordando?
O gerente explicou com medo, como se fosse ele o homem que
procurava o leão.
— Diz pra ele voltar amanhã.
Com a mão trêmula, o gerente tapou o bocal do telefone e, falando
baixo, transmitiu ao desafiante a sugestão do desafiado.
— Ele teve uma boa idéia. Disse pra você voltar amanhã.
Guido tomou o telefone da mão fria do gerente.
— Amanhã volta a sua velha. Se você é homem, como pensa que é,
vem cá. Vem pra ser arrebentado, seu safado.
— Oh, Guido — falou manso o sonolento Bigode — eu tou dormindo!
— e bocejou sincero, mostrando que não inventava.
— Tu tá tremendo.
— Esquece aquele negócio, procurava contemporizar o Bigode,
homem que, no fundo, era bom, tanto que criava passarinhos. — Esquece
aquilo, Guido. Eu tava de porre. Eu sou teu amigo, rapaz.
Até parece!
— Meu amigo é os tomates. Vem, que eu vou te dar o troco.
— Guido, escuta, tu parece menino.
— E tu parece puta.
— Não tou a fim de brigar, meu velho.
— Teu velho é o cara que tu pensa que é teu pai. E quem falou
que tu vai brigar? Tu vai apanhar nessa cara, pra deixar de ser
folgado.
— Guido...
— Vem ou não vem, Maria Mijona?
Bigode não podia recuar.
— Tá OK. Vou tomar um banho e vou. Em meia hora tou aí.
— 15 minutos! — exigiu Guido, achando-se no direito de dar ele
as ordens, na qualidade de desafiante.
— Vou ver o que posso fazer — prometeu Bigode.
Levantou-se, esticou os braços curtos e fortes, a patativa
cantava, pensando que o dia nascera. Tinha água. Vestiu uma camisa
de colarinho puído — camisa de briga como nós, que não brigamos,
definimos — e foi.
Na calçada, uma platéia de Fla-Flu.
Tina comia um misto quente no bar ao lado da boate. A torcida
dividida.
— Eu sabia que o Guido, um dia, ia "às forra".
— Quem não sabia?
— Fica falando aí. Tu até chegou a dizer que ele era bicha.
— Fala baixo, rapaz. Parece que tá fazendo comício.
— Eu sou mais o Bigode, quer valer uma Brahma?
— Tá falado.
— Meu amiguinho, o que vai voar de pena! Vê lá se não vai sobrar
nada pra gente.
— Tu pensa que eu sou doido? Na hora do pau eu vou subir na
marquise, pra ver de cima.
Guido estalava os dedos, comprimindo-os contra a palma da mão.
Seis meses, meu nego! Sem farra, sem álcool, sem sexo. Ou quase
sem. E, nesses seis meses, que ninguém esqueça de uns 15 dias de
dieta macrobiótica. E o melhor é que pelo menos uns vinte caras
que tinham presenciado a covarde agressão do Bigode estavam presentes.
Viram o verso? Pois iriam ver o reverso.
Bigode veio de ônibus. O pagamento ainda não tinha saído.
Olhou para os dois lados da rua antes de atravessá-la. Isto
provava que não estava fora da sua razão. Podia até mostrar tranqüilidade.
Os olhos do Guido faiscavam, como se fabricassem zarabatanas
de fogo. O sanduíche de Tina descansou no balcão, e suas mãos se
juntaram, num entrelaçamento de dedos que tanto podia ser prece
como dúvida. Bigode parou a dois metros.
— Guido...
— Não tem papo.
Foi a última vez que Bigode tentou contemporizar, contornar
aquela situação até certo ponto ridícula. Daí, fez o seguinte: caminhou,
chegou pertinho e deu um uppercut. Um só, no queixo, Guido
caiu como um Gabinete Francês: sem ruído.
A torcida não entendeu. Foi um impacto semelhante ao de um gol
aos 10 segundos. O gerente abriu e fechou os olhos, querendo checar
se estava mesmo acordado; o negrinho porteiro acendeu um Continental;
Tina mordeu o sanduíche; e Bigode pegou o ônibus para
voltar pra casa. Quando entrou no apartamento, a patativa dormia
no poleiro. Sono mais tranqüilo do que o de Guido, que se esparramava
na calçada. Um sono de seis meses jogados fora.
Tina não o ajudou a acordar. Foi embora de táxi, dormir na casa
da mãe. Para sempre, aliás.

WHITNEY HOUSTON MORRE AOS 48 ANOS

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Duda Quebra o Nariz e perde para Holly Holm

A Cartomante de Machado de Assis





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Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que
sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço
Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui,
e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que
era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma
pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as,
e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não
era verdade...
— Errou! interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe
queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando
tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a;
disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que
havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é
que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.
Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro
de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em
que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele,
como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e
logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê?
Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo
mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do
mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser
amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr
às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se
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lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma
comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de
Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem
para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a
carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que
queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a
mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da
província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e
veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo,
e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como
meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia
as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca
fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela
vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer
mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática.
Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no
berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a
mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos
dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou
especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que
gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma
irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele
aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos
livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e
jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até
aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam
muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as
atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então
que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho.
Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A
velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada,
fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas
que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente,
foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e
pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,
remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória
delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí
foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e
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pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam
ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e
pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para
desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as
ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma
intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do
ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante
para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a
cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que
fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas
anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas
despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal
compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta
tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter
com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das
cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro,
e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles,
tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio
particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a
suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas
semanas. Combinaram os meios de se corresponderem , em caso de necessidade,
e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:
"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia.
Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório;
por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou
ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da
véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com
os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que
ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois
sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De
caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe
explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem
descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia
anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela
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conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras
estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, —
eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa
casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom
de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A
comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que
chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado,
considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo
depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção
do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote
largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e
ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o
tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo,
em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que
ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita
consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as
janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do
incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro
tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à
primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E
inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a
cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas;
desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu
outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os
homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava
em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da
carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para
ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se diante de um longo véu
opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe
repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de
Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a
filosofia... " Que perdia ele, se... ?
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e
rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos
dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu.
Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três
pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela
fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais
escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o
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telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes
aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as
costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de
Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas.
Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo
dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com
grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez
das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a
estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe
que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o
terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam
invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo
estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na
gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por
cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como
se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda,
sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a
despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as
unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso
por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
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A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando,
com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que
levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre.
Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu
estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris;
recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares.
Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e
que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa;
parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga
assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora
vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam
tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes
queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras
secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe,
a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que
formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes
de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar,
estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve
assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do
jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal
teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram
para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao
fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola,
e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
FIM

JOHN LENNON

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012