terça-feira, 28 de agosto de 2012

David Nasser e Jean Manzon 20 anos depois:
O Debret da câmera

O AMAZONAS que Jean Manzon buscava era um gigante líquido, deitado ao sol, de barriga para o céu, estendendo os braços para as Guianas e o Maranhão, arrotando pororocas, vomitando rios, expelindo florestas, lentamente digeridas por seu estômago volumoso, por um aparelho digestivo imenso, a ilha de Marajó.
O FRANCÊS ingênuo e bom que eu havia conhecido a descer de um navio fugitivo, ao se engajar na aventura brasileira, sonhava em ver o Amazonas sôbre os índios de rabo de macaco. E se era verdade que havia uma tribo de selvagens brancos, descendentes de náufragos do tempo dos piratas.
CERTA vez, caminhou duas semanas dentro da floresta, sôbre um mapa imaginário, a ver se descobria uma mulher que vivia com um gorila. Não imaginem o trabalho para convencer ao jovem veterano de guerra a ausência de gorilas na Amazônia. Não podia admitir, na fantasia gaulesa, que um vale de gigantes como aquêle, um leito de mundos, não abrigasse gorilas.
O PROCESSO de abrasileiramento de Manzon foi lento, progressivo, macerado, mas brilhante. Hoje é um dos mais românticos e equilibrados brasileiros que conheço. Come o feijão-mulatinho dos caiçaras, adora uma cachacinha antes do jantar, traça uma carne-de-sol com o apetite de um jagunço, pede sempre, nas escalas pelo Norte, um sarapatel do Recôncavo - e a sua casa é tôda ela uma prece de amor ao Brasil. Rêdes bandeirantes pela varanda, lembranças de índios pelas paredes, arte barrôca de Minas Gerais pelos cantos - e um cheiro de pimenta-malagueta vindo da cozinha, onde o mestre-cuca é uma pernambucana autoritária e eficiente.
NAQUELE tempo da primeira Amazônia, êle era apenas francês, e contemplava o rio e seu universo vegetal como um francês que houvesse desembarcado de um bergantim do século XVII. Os tipos, os hábitos, as côres, tudo era um espetáculo diferente para a câmera aventureira de um dos mais fabulosos repórteres que a guerra, após a queda da França, nos havia exportado. Não podia ver um arco, uma flecha, um vaso marajoara, sem comprar. Seu quarto de hotel era um museu. Araras, urnas funerárias, bordunas, colares de dentes de onças, e até cabeças mumificadas vindas do Peru amazônico - eram a bagagem de Manzon. Com o tempo, acabou por descobrir que tudo era falso. As urnas jamais tinham sido o repositório de um índio morto, mas saíram da indústria de índios muito vivos, num bairro de Belém. Os colares azuis, verdes, amarelos, onde se penduravam caninos de hipotéticos guerreiros autóctones, não passavam de apanhados de dentes de macacos submetidos, em vida, a êsse processo extrativo altamente rendoso.
VIMOS isso - e só então começou a abrir os olhos o meu companheiro de aventuras - quando encontramos, sentado sôbre um tôco, um índio domesticado a arrancar dentes de um símio a alicate . O pobre macaco enchia a solidão com os seus gritos de pavor, estrebuchando-se nas garras daquele dentista da floresta.
A DÚVIDA se acentuou ainda mais no espírito de Manzon quando êle quis alvejar com a flecha a uma onça que espreitava a barraca - e o arco se partiu em suas mãos. A onça espiou por um minuto, espantada, aquêle homem branco, de arco partido, inteiramente à sua mercê - e voltou as costas, orgulhosa, enfiando-se no mato.
A TERCEIRA e mais grave decepção de sua aventura no mundo verde êle a teve ao consultar um índio, nos arredores de Gurupá. Queria saber em que tempo a gaiola fluvial levaria até Belterra. O índio entrou na maloca e saiu de lá com um Guia Levi.
- Nessa geringonça - disse o urubu civilizado, num português irrepreensível - os senhores demorarão algumas horas. Mas amanhã tem um Baby-Clipper da Panair.
JEAN Manzon se abrasileirou de maneira tão intensa em sua nova peregrinação amazônica, que prendeu o vale em suas imagens como se escrevesse, com as tintas da máquina privilegiada, as brasileiríssimas páginas do lusitano Ferreira de Castro ou do nacional Gastão Cruls. Passou a ver o Amazonas como um rio humano. Solidarizou-se com a miséria que antes, para êle e para o turista, para o repórter ou para o visitante, era um complemento da paisagem. Passou a ver nas aldeias de índios o aspecto trágico que sua lente não captava.
LEMBRO-ME daquela tarde em que penetramos, por um igarapé, em um núcleo de aborígines. Estavam sob as árvores, deitados, morrendo. Havia sido uma gripe, uma gripe só, levada por um caixeiro-viajante. O índio não tem resistência para as doenças civilizadas. Manzon achou aquilo sensacional. Hoje veria o quadro com os olhos do horror. E o repórter teria falecido nêle, para despertar o ser humano. Largar-se-ia, na condução que tivesse, de jipe ou de teco-teco, para buscar socorro, médicos, remédios, alimentos. Creio que o Brasil - e mais particularmente a Amazônia - civilizou êsse repórter.
ENTRISTECE-ME, no fim de nossas carreiras, o desdém com que falsos intelectuais e falsos artistas, mas sobretudo falsos brasileiros, procuram vestir de silêncio um trabalho de evangelização que êsse rapaz fêz com a câmera, como um Debret que usasse a lente, o filme, o revelador, em vez do desenho, da goma-arábica visual, da aquarela. As guerras napoleônicas nos mandaram o pintor Debret, o aluno de Louis David, numa histórica missão de arte. Outra guerra trouxe, para a história do jornalismo dêste país - e para a documentação viva, física, real, colorida de uma época - , um pintor de tintas mais reais, pois as arranca diretamente do original. Creio que só o tempo há de julgar, na sua imparcialidade, o mérito de um, como julgou o do outro. Contendo-me em ter sido, em tôda essa fase maravilhosa de nossa vida, quando, partíamos sem saber para onde, o companheiro que tornou possível essa aventura.

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