David
Nasser e Jean Manzon 20 anos depois:
O Debret da câmera
O
AMAZONAS que Jean Manzon buscava era um gigante líquido,
deitado ao sol, de barriga para o céu, estendendo os braços
para as Guianas e o Maranhão, arrotando pororocas, vomitando
rios, expelindo florestas, lentamente digeridas por seu estômago
volumoso, por um aparelho digestivo imenso, a ilha de Marajó.
O
FRANCÊS ingênuo e bom que eu havia conhecido a descer
de um navio fugitivo, ao se engajar na aventura brasileira, sonhava
em ver o Amazonas sôbre os índios de rabo de macaco.
E se era verdade que havia uma tribo de selvagens brancos, descendentes
de náufragos do tempo dos piratas.
CERTA vez, caminhou duas semanas
dentro da floresta, sôbre um mapa imaginário, a ver
se descobria uma mulher que vivia com um gorila. Não imaginem
o trabalho para convencer ao jovem veterano de guerra a ausência
de gorilas na Amazônia. Não podia admitir, na fantasia
gaulesa, que um vale de gigantes como aquêle, um leito de
mundos, não abrigasse gorilas.
O PROCESSO de abrasileiramento de
Manzon foi lento, progressivo, macerado, mas brilhante. Hoje é
um dos mais românticos e equilibrados brasileiros que conheço.
Come o feijão-mulatinho dos caiçaras, adora uma cachacinha
antes do jantar, traça uma carne-de-sol com o apetite de
um jagunço, pede sempre, nas escalas pelo Norte, um sarapatel
do Recôncavo - e a sua casa é tôda ela uma prece
de amor ao Brasil. Rêdes bandeirantes pela varanda, lembranças
de índios pelas paredes, arte barrôca de Minas Gerais
pelos cantos - e um cheiro de pimenta-malagueta vindo da cozinha,
onde o mestre-cuca é uma pernambucana autoritária
e eficiente.
NAQUELE tempo da primeira Amazônia,
êle era apenas francês, e contemplava o rio e seu universo
vegetal como um francês que houvesse desembarcado de um bergantim
do século XVII. Os tipos, os hábitos, as côres,
tudo era um espetáculo diferente para a câmera aventureira
de um dos mais fabulosos repórteres que a guerra, após
a queda da França, nos havia exportado. Não podia
ver um arco, uma flecha, um vaso marajoara, sem comprar. Seu quarto
de hotel era um museu. Araras, urnas funerárias, bordunas,
colares de dentes de onças, e até cabeças mumificadas
vindas do Peru amazônico - eram a bagagem de Manzon. Com o
tempo, acabou por descobrir que tudo era falso. As urnas jamais
tinham sido o repositório de um índio morto, mas saíram
da indústria de índios muito vivos, num bairro de
Belém. Os colares azuis, verdes, amarelos, onde se penduravam
caninos de hipotéticos guerreiros autóctones, não
passavam de apanhados de dentes de macacos submetidos, em vida,
a êsse processo extrativo altamente rendoso.
VIMOS isso - e só então
começou a abrir os olhos o meu companheiro de aventuras -
quando encontramos, sentado sôbre um tôco, um índio
domesticado a arrancar dentes de um símio a alicate . O pobre
macaco enchia a solidão com os seus gritos de pavor, estrebuchando-se
nas garras daquele dentista da floresta.
A DÚVIDA se acentuou ainda
mais no espírito de Manzon quando êle quis alvejar
com a flecha a uma onça que espreitava a barraca - e o arco
se partiu em suas mãos. A onça espiou por um minuto,
espantada, aquêle homem branco, de arco partido, inteiramente
à sua mercê - e voltou as costas, orgulhosa, enfiando-se
no mato.
A
TERCEIRA e mais grave decepção de sua aventura no
mundo verde êle a teve ao consultar um índio, nos arredores
de Gurupá. Queria saber em que tempo a gaiola fluvial levaria
até Belterra. O índio entrou na maloca e saiu de lá
com um Guia Levi.
- Nessa geringonça - disse o “urubu” civilizado, num português irrepreensível - os senhores demorarão algumas horas. Mas amanhã tem um Baby-Clipper da Panair.
JEAN
Manzon se abrasileirou de maneira tão intensa em sua nova
peregrinação amazônica, que prendeu o vale em
suas imagens como se escrevesse, com as tintas da máquina
privilegiada, as brasileiríssimas páginas do lusitano
Ferreira de Castro ou do nacional Gastão Cruls. Passou a
ver o Amazonas como um rio humano. Solidarizou-se com a miséria
que antes, para êle e para o turista, para o repórter
ou para o visitante, era um complemento da paisagem. Passou a ver
nas aldeias de índios o aspecto trágico que sua lente
não captava.
LEMBRO-ME
daquela tarde em que penetramos, por um igarapé, em um núcleo
de aborígines. Estavam sob as árvores, deitados, morrendo.
Havia sido uma gripe, uma gripe só, levada por um caixeiro-viajante.
O índio não tem resistência para as doenças
civilizadas. Manzon achou aquilo sensacional. Hoje veria o quadro
com os olhos do horror. E o repórter teria falecido nêle,
para despertar o ser humano. Largar-se-ia, na condução
que tivesse, de jipe ou de teco-teco, para buscar socorro, médicos,
remédios, alimentos. Creio que o Brasil - e mais particularmente
a Amazônia - civilizou êsse repórter.
ENTRISTECE-ME,
no fim de nossas carreiras, o desdém com que falsos intelectuais
e falsos artistas, mas sobretudo falsos brasileiros, procuram vestir
de silêncio um trabalho de evangelização que
êsse rapaz fêz com a câmera, como um Debret que
usasse a lente, o filme, o revelador, em vez do desenho, da goma-arábica
visual, da aquarela. As guerras napoleônicas nos mandaram
o pintor Debret, o aluno de Louis David, numa histórica missão
de arte. Outra guerra trouxe, para a história do jornalismo
dêste país - e para a documentação viva,
física, real, colorida de uma época - , um pintor
de tintas mais reais, pois as arranca diretamente do original. Creio
que só o tempo há de julgar, na sua imparcialidade,
o mérito de um, como julgou o do outro. Contendo-me em ter
sido, em tôda essa fase maravilhosa de nossa vida, quando,
partíamos sem saber para onde, o companheiro que tornou possível
essa aventura.
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terça-feira, 28 de agosto de 2012
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