quarta-feira, 15 de abril de 2009

Os caras-lavadas

Os universitários da UnB resgataram a capacidade de se indignar e se mobilizar contra a sem-vergonhice.

RUTH DE AQUINO
é redatora-chefe de ÉPOCA
raquino@edglobo.com.br

Ela tinha 4 anos quando os caras-pintadas saíram às ruas, em 1992, para exigir o impeachment de um presidente. No início de abril, Catharina Lincoln, 20 anos, estudante de História da Universidade de Brasília (UnB) e militante do PSTU, dissidência trotskista do PT, estava a caminho do aeroporto para se despedir do namorado, que ia para o Paraguai, quando o dever falou mais alto. Seus amigos tinham ocupado o gabinete do reitor Timothy Mulholland. Ela disse pelo celular “tchau, meu amor”. Ele deu força, e Catharina, uma das líderes da ocupação, viveu duas semanas que jamais esquecerá.

Forró com debates. Roda de violão e “abraços coletivos”. “Recebíamos mensagens: os policiais estão chegando, vão tirar vocês daí. Rolava ansiedade, fragilidade.” Funk e internet móvel. Bateria no térreo e vídeos no YouTube. Ioga pela manhã, oficina de poesia à noite. Comida e roupas içadas por corda até o 3º andar. Rampa transformada em tobogã de diversões. Enterro simbólico do reitor. Dormiam em cadeiras, no chão, dividiam colchonetes. Faziam faxina no banheiro e não depredaram mobília nem computador. Surgiram namoros, não os de Carnaval, que acabam na Quarta-Feira de Cinzas. Era uma azaração nascida de ideais, e do confinamento físico e psicológico. “Parecia um Big Brother sem luz nem água; estávamos ilhados por seguranças, sem tomar banho. E éramos centenas. Ficamos 24 horas por dia com desconhecidos. Nunca tínhamos nos encontrado antes na UnB, éramos de mundos diferentes.” Estavam unidos por uma palavra de ordem: “Fora, Timothy”.

De vestidinhos de malha, bermudas, chinelos e camisetas, algumas do Che, os caras-lavadas da UnB derrubaram o magnífico reitor, aquele da lixeira de R$ 1.000. O cara-de-pau que, segundo o Ministério Público, gastou quase meio milhão de reais, da verba de pesquisa da universidade, para reformar sua cobertura. Não foram R$ 470 mil, foram “só” R$ 350 mil. Essa foi a única linha de defesa de Mulholland. O vírus contaminou o reitor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Ulysses Fagundes Neto, de 62 anos, que gastou R$ 84.800 do cartão corporativo em grifes Nike e Adidas, cerâmicas, produtos eletrônicos, malas na China. “Achei que era diária, botava no bolso sem ter de explicar.” Santa ingenuidade.
Estudantes da UnB derrubam reitor e dão exemplo ao país

A atitude dessa garotada reconcilia os brasileiros com sua capital. Brasília é cidade de passagem de congressistas. O presidente Lula já deixou escapar que “ficar ali é uma desgraceira só”. A reputação dos jovens da capital ficou manchada pelos cinco rapazes de classe média que queimaram vivo, em 1997, o índio Galdino, por passatempo ou tédio.

De repente, um bando de jovens sangue bom resgata a capacidade de se indignar num país que parece não crer mais em mobilização contra a sem-vergonhice. Os universitários de Brasília deram uma lição e um exemplo. “Ocupa, ocupa, ocupa e resiste”, gritavam. Resistiram a ataques de seguranças. Resistiram à juíza Cristiane Rentszch, que queria obrigá-los a deixar a reitoria. Resistiram à multa de R$ 1.000 por hora, e deram festa quando a multa chegou a R$ 1 milhão. Resistiram à descrença geral. Professores e servidores aderiram. O pai de Catharina ficou “bravo”, mas depois entendeu. Parentes fotografaram e filmaram, orgulhosos. A ocupação durou 15 dias, terminou na sexta-feira. “Mas a luta continua”, diz Catharina. Ela apresentou no YouTube, com o colega Yuri Soares, “o jornal da ocupação”.

“A sociedade tenta nos convencer de que o movimento estudantil morreu. Mas não é verdade que os jovens brasileiros sejam alienados. Estávamos apenas desatentos. Não sabíamos a extensão de nosso poder. Nada é impossível. Conseguimos derrubar uma casta que mandava havia quase 20 anos na UnB. Mostramos que é possível uma nova consciência.”

Resista, Catharina, nossa pequena imperatriz de cabelos loiros, com mechas de luzes.

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