segunda-feira, 25 de maio de 2009

Ratos humanos

“Numa pequena constelação de genes, está concentrado o mistério da condição humana.”

Drauzio Varella

Mulheres e homens têm apenas 30 mil genes! A divulgação desse dado pelo Projeto Genoma foi um balde de água fria no orgulho humano: imaginávamos que fossem pelo menos 100 mil.
Se as moscas têm 13 mil genes, qualquer verme, 20 mil, um abacateiro, 25 mil, e os camundongos que caçamos nas ratoeiras 30 mil, para nós, 100 mil parecia estimativa razoável. Afinal, não foi culpa nossa havermos sido criados à imagem e semelhança de Deus.
A bem da verdade, já sabíamos que mais de 98% de nossos genes são idênticos aos dos chimpanzés. Mas chimpanzés são animais políticos que formam comunidades com culturas próprias, utilizam instrumentos rudimentares e matam seus semelhantes premeditadamente. São, por assim dizer, seres mais humanos.
Admitir, no entanto, que nosso genoma é formado pelo mesmo número de genes dos ratos e que somente 300 genes são responsáveis pelas diferenças entre nós e eles constitui humilhação inaceitável.
A visão antropocêntrica, segundo a qual a vida na Terra teria evoluído dos seres unicelulares para indivíduos cada vez mais complexos até chegar ao homem, é um mau entendimento das leis da natureza. No "ranking" evolucionário, não existe primeira posição. A prova é que as bactérias foram os primeiros habitantes do planeta e não só ainda estão por aí como representam mais da metade da biomassa terrestre, isto é, se somarmos o peso de cada uma, obteremos mais da metade da massa de todos os demais seres vivos somados, incluindo árvores e elefantes.
O Homo sapiens é simplesmente uma entre milhões de espécies. Nascemos há 5 milhões de anos, um segundo evolucionário comparado aos 4 bilhões de anos das bactérias. Não fizemos nenhuma falta à vida na Terra durante praticamente toda a existência dela e, se um dia formos extintos, nenhuma formiga, cigarra ou besouro chorará a nossa ausência. A evolução continuará seu caminho inexorável de competição e seleção natural, como ensinou Charles Darwin.
Na verdade, os números do Projeto Genoma são lógicos. Os seres vivos mantêm a quase totalidade de seus genes ocupados na execução das tarefas do dia-a-dia: respiração, circulação, movimentação, digestão, excreção e produção de energia, entre outras.
Muitos desses genes são tão essenciais ao trabalho doméstico que a evolução os preservou praticamente intactos de um ser vivo para outro. Vejam o caso do gene responsável pela ubiquitina.
A ubiquitina é uma proteína envolvida no maquinário celular, encarregada de cortar outras proteínas. Dentro da célula, essa é uma função importantíssima, porque as proteínas que ficaram velhas ou saíram defeituosas precisam ser destruídas para não atrapalhar o funcionamento celular. Outras têm que ser cortadas para permitir que ocorram determinadas reações inibidas por sua presença, da mesma forma que a tampa de um tanque precisa ser retirada para que escoe a água nele contida.
Se compararmos a ubiquitina de um fungo com a da mosca da banana, com a de um verme, com a de um sapo ou com a do homem, veremos que as moléculas são praticamente iguais (daí o nome para sugerir ubiquidade). A semelhança é tanta que os biólogos interessados no mecanismo de ação da ubiquitina não são obrigados a estudá-la no homem: podem fazê-lo num fungo e transpor os resultados para a fisiologia humana.
É provável que o ancestral comum aos fungos e aos homens, que viveu há 600 milhões de anos, tenha desenvolvido um método tão eficiente de cortar proteínas que se manteve intacto durante o processo evolutivo. Os descendentes desse ancestral incapazes de produzir ubiquitina não tiveram chance na competição e desapareceram.
Como o gene da ubiquitina, grande número de outros são compartilhados por todos os seres vivos, com diferenças mínimas. Estão geralmente ligados às funções essenciais à manutenção da vida na célula. Representam soluções tão econômicas para a execução das tarefas diárias que a evolução não conseguiu imaginar outras melhores. É como o caso da existência de dois olhos na cabeça, por exemplo, estratégia adotada por todos os animais dotados de visão.
Entender a razão pela qual temos 30 mil genes como os ratos é fácil: eles são mamíferos como nós e apresentam fisiologia tão semelhante à nossa que podem ser utilizados em experiências para entender o organismo humano. O que intriga na evolução não é a proximidade genética entre as espécies, mas os genes responsáveis pelas diferenças.
Se o que nos distingue dos ratos são mesmo 300 genes, as interações entre estes e o ambiente envolvem imensa complexidade biológica. É nessa pequena constelação de genes que está concentrado o mistério da condição humana.

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