sexta-feira, 1 de maio de 2009

A imponderável felicidade dos povos

Affonso Romano de Sant'ana

24/12/99

Estou no aeroporto de Miami. Tenho cinco horas de espera entre um vôo e outro. Estou vindo da Carolina do Norte e regressando ao Rio. Escapei do furacão Floyd e volto ao furacão de incertezas, que é o meu país.

Tenho cinco horas de intervalo entre a pós-modernidade ingênua e a barbárie lírica, e resolvo ler uma quantidade absurda de jornais de todo o mundo. Todo aeroporto é uma encruzilhada sócio-histórica e racial. Este aqui é o acoplamento da América de cima com a América debaixo. Todos os serviçais são latino-americanos. Os passageiros são de várias nacionalidades e, de repente, observo uma coisa sintomática ao meu lado. Negros e mais negros vêm a um balcão próximo. Uns após outros, às vezes em grupos. É um balcão da loteria. E uma pergunta crava-se na minha testa: "Por que só os negros, nesta encruzilhada ou aeroporto, jogam na loteria?".

Ainda há dias estava naqueles bucólicos campus universitários. Muita grama, árvores, milhares de pernas loiras vestindo bermudas, indo e vindo entre salas de aula e bibliotecas. Olhava aquela meninada. Aos meus maduros olhos os estudantes estão cada vez mais verdes e jovens. Lembro-me de 30 e tantos anos atrás, quando pela primeira vez pousei num desses paraísos. O que é que podiam esperar os governantes deste país, quando pegavam esses meninos tão confortavelmente criados e os jogavam nos pântanos da guerrilha no Vietnã?

Já o disse e repito: quem nunca esteve num campus americano jamais saberá o que é uma universidade. As quadras de esportes e piscinas, as fabulosas bibliotecas, teatro com atores e grupos famosos que percorrem todo o país, além das facilidades técnicas para a aprendizagem.

Mas no prédio onde lecionam línguas e literaturas latinas, vejo num quadro de avisos, algo humilhante: enquanto França, Espanha e Itália oferecem viagens de turismo, cursos e estágios aos alunos, uma folha de papel conclama estudantes caridosos para virem cuidar de crianças abandonadas no Brasil.

Deveria chorar, mas ao invés leio a resenha de um livro chamado "Crying", onde o autor Tom Lutz traça a história natural e cultural das lágrimas. Deveria desaparecer, mas leio a crítica ao livro "Faster" - onde James Gleick estuda a mania da rapidez em nossa cultura. E porque são duros tempos esses, tomo contato com "A breve história da rudeza", de Mark Galdwell. E leio mais. Leio que a população mundial que hoje é de seis bilhões, em 2050 será de nove bilhões, e que a Índia ultrapassará a China em número de habitantes. Mas a China hoje cresce a 10% ao ano, virou um grande canteiro de investimento do Ocidente, um grande supermercado, um grande mall. E pousa no aeroporto de minha imaginação, um ideogramático poema em inglês, sintetizando a história chinesa em três versos:

The Great Wall./ The Great Mao./ The Great Mall.

Em contraposição aprendo que enquanto os americanos triplicaram o seu número de bilionários (agora são uns 400), a América Latina que entre 1970 e 1980 tinha 50 milhões de pobres agora tem deles 198 milhões, e o trabalho informal que por aqui estava em torno de 40% agora é de 82%.

E viva a globalização!

Continuo mentalmente no aeroporto lendo agora um jornal europeu que traz um depoimento tocante de Almodóvar, a propósito do lançamento, fora da Espanha, de "Tudo sobre minha mãe". Já lhes falei algo sobre esse genial filme que tive o privilégio de ver há uns seis meses em Madri. O artigo de Almodóvar não é sobre o filme, é sobre sua mãe mesmo, que acabara de morrer. Lá pelas tantas ele diz: "Para completar o salário de meu pai, minha mãe abriu um comércio de leitura de cartas, como no filme ‘Central do Brasil’. Eu tinha 8 anos, e em geral era eu que escrevia as cartas e era ela quem lia as que os vizinhos recebiam. Às vezes, escutando o texto que minha mãe lia, me dava conta, com estupefação, que ele não correspondia exatamente ao que estava escrito no papel: minha mãe inventava uma parte. Os vizinhos não sabiam, pois o que ela inventava era um prolongamento de suas vidas e eles saíam encantados".

Penso se Waltinho Moreira Salles leu este depoimento, onde outro grande diretor demonstra como a realidade necessita da ficção para se complementar. Bem que eu dizia aos estudantes da Universidade de Duke uma das poucas verdades que aprendi e que continuarei repetindo até o fim dos meus dias: a realidade é apenas a parte mais visível da ficção.

Ali em Duke, aliás, vi uma coisa realmente fantástica. Uma das mais gigantescas catedrais góticas do mundo, plantada no interior da América. Construiu-a no meio do campus, o senhor James Duke. Dizem que ele antes quis comprar e botar seu nome na Universidade de Princeton. Não aceitaram. Então resolveu construir uma rica universidade com seu nome e ainda meteu lá aquela catedral ecumênica que tem esculpidas nos portais figuras tanto de Lutero e John Wesley quanto Savonarola.

Realidade. Ficção. Encruzilhada. Aeroporto. Jornais.

Agora estou lendo um artigo que começa assim: "Há pouco tempo no reino de Butão, no Himalaia, um rei buscando um modo de conduzir uma sociedade medieval para a modernidade decidiu que ao invés de submeter as aspirações nacionais ao Produto Nacional Bruto iria usar outra medida, chamada Felicidade Nacional Bruta".

Ou seja: não queria medir a quantidade de coisas adquiridas por seus súditos e sim o nível de satisfação pessoal.

Fico sabendo então que Ronald Inglehart do Instituto de Pesquisas Sociais de Michigan está interessado na teoria e prática daquele rei, que nem sei se existe. O pesquisador está desenvolvendo, junto com o alemão Hans-Dieter Klingemann, um projeto para medir o nível da imponderável felicidade de certos povos.

Não sei quando é que vão chegar por aqui para medir a felicidade dos brasileiros. Lembro-me que Maiakóvski no princípio do século havia escrito um poema com esses intrigantes e desafiadores versos:

Dizem/ que em alguma parte/ - parece que no Brasil -/ existe um homem feliz!

É possível que exista.

Quem localizá-lo favor informar à seção de achados e perdidos.

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