sábado, 2 de maio de 2009

Cartas de amor

Fernando Pessoa



1

Ophelinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indifferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de "razões" tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m'o. Assim, entendo da mesma maneira, mas dõe-me mais.

Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quizer: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.

Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso "entalar".

Porque não é franca para commigo? Que empenho tem em fazer soffrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a propria vida isolada e triste, e não precisa de que lh'a venham accrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe affeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.

Reconheço que tudo isto é comico, e que a parte mais comica d'isto tudo sou eu.

Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse no soffrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amál-a, o tenha merecido, e creio bem qeu amál-a não é razão bastante para o merecer. Enfim...

Ahi fica o "documento escripto" que me pede. Reconhece a minha assignatura o tabellião Eugenio Silva.

1.3.1920.

Fernando Pessoa

pp. 48-49

3

19.2.1920

ás 4 da madrugada

Meu amorzinho, meu Bébé querido:

São cerca de 4 horas da madrugada e acabo, apezar de ter todo o corpo dorido e a pedir repouso, de desistir definitivamente de dormir. Ha trez noites que isto me acontece, mas a noite de hoje, então, foi das mais horriveis que tenho passado em minha vida. Felizmente para ti, amorzinho, não podes imaginar. Não era só a angina, com a obrigação estupida de cuspir de dois em dois minutos, que me tirava o somno. É que, sem ter febre, eu tinha delirio, sentia-me endoidecer, tinha vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil cousas disparatadas. E tudo isto não só por influencia directa do mal estar que vem da doença, mas porque estive todo o dia de hontem arreliado com cousas, que se estão atrazando, relativas á vinda da minha família, e ainda por cima recebi, por intermedio de meu primo, que aqui veio ás 7 1/2, uma serie de noticias desagradaveis, que não vale a pena contar aqui, pois, felizmente, meu amor, te não dizem de modo algum respeito.

Depois, estar doente exactamente numa occasião em que tenho tanta cousa urgente a fazer, tanta cousa que não posso delegar em outras pessoas.

Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espirito em que tenho vivido estes dias, estes dois ultimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausencia, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais hão havia eu de sentir o não te ver, meu amor, ha quasi três dias!

Diz-me uma cousa, amorzinho: Porque é que te mostras tão abatida e tão profundamente triste na tua segunda carta - a que mandaste hontem pelo Osorio? Comprehendo que estivesses tambem com saudades; mas tu mostras-te de um nervosismo, de uma tristeza, de um abatimento tães, que me doeu immenso ler a tua cartinha e ver o que soffrias. O que te aconteceu, amôr, além de estarmos separados? Houve qualquer cousa peor que te acontecesse? Porque fallas num tom tão desesperado do meu amor, como que duvidando d'elle, quando não tens para isso razão nenhuma?

Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente da casa, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimonia, e só me vem trazer caldo, leite ou qualquer remedio durante o dia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então a esta hora da noite parece-me que estou num deserto; estou com sêde e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.

Estou cheio de frio, vou estender-me na cama para fingir que repouso. Não sei quando te mandarei esta carta ou se acrescentarei ainda mais alguma cousa.

Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu

Fernando

pp. 51-53

7

23/3/1920

Meu querido Be«be»sinho,

Hoje, com a quasi certeza que o Osorio não te poderá encontrar, pois, além de ter que esperar aqui pelo Valladas, tem naturalmente que ir levar assucar a casa de meu primo, quasi que de nada me serve escrever-te. Vão, em todo o caso, estas linhas, para o caso de sempre ser possivel fazer te chegar a carta ás mãos.

Ainda bem que a interrupção de ainda agora foi mesmo no fim da nossa conversa, quando iamos despedir-nos. Era justamente para evitar interrupções d'essas que eu escolhi o caminho por onde hoje iamos. Amanhã esperarei à mesma hora, sim Bébé? Não me conformo com a idéa de escrever; queria fallar-te, ter-te sempre ao pé de mim, não ser necessário mandar-te cartas. As cartas são signais de separação - signais, pelo menos, pela necessidade de as escrevermos, de que estamos affastados.

Não te admires de certo laconismo nas minhas cartas. As cartas são para as pessoas a quém não interessa mais fallar: para essas escrevo de boa vontade. A minha mãe, por exemplo, nunca escrevi de boa vontade, exactemente porque gosto muito d'ella.

Quero que sintas isto, que saibas que eu sinto e penso assim a este respeito, para não me achares secco, frio, indifferente. Eu não o sou, meu Bébé-menininho, minha almofadinha côr-de-rosa para pregar beijos (que grande disparate!)

Mando um meiguinho chinez.

E adeus até amanhã, meu anjo.

Um quarteirão de milhares de beijos do teu, sempre teu

Fernando

O Osorio leva o chinez dentro de uma caixa de phosphoros.

pp. 65-66

16

Meu Be«be»zinho lindo:

Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Alvaro de Campos).

Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como tambem pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, habil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espirito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu propria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...

Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais docil, mais meiga, mais amoravel.

Enfim...

Amanhã passo á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer á janella?

Sempre e muito teu

Fernando

27/4/1920

33

Domingo 15.8.1920

Vibora:

Recebi a tua carta má, e, na verdade, não percebo como foi que nos não encontrámos nem hontem nem antes de hontem. Differença de relogios? Não creio, porque não notei, quer num dia quer noutro, ao chegar á Baixa, que o meu relogio estivesse tão errado.

Escrevo-te só estas linhas para te dizer que estarei amanhã ao meio-dia em ponto no fim da Av. das Cortes. Vães ao escriptorio da R. da Victoria á 1. Isto deve dar-te tempo. O peor é se vães acompanhada. Em todo o caso esperar-te-hei até ás 12 1/4.

Oxalá estejas melhor; mas isso não é desgosto, é viboridade, ou seja maldade.

Sempre e muito teu

Fernando

Estou escrevendo do Café Arcada ao meio dia e 3 quartos. Porisso escrevo pouco (contra o meu costume) para ver se passo na tua rua não muito longe da uma hora.

p. 125 36

Ophelinha:

Agradeço a sua carta. Ella trouxe-me pena e allivio ao mesmo tempo. Pena, porque estas cousas fazem sempre pena; allivio, porque, na verdade, a unica solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amisade inalteravel. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se attribuissem.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabellos, envelhece tambem, mas mais depressa ainda, as affeições violentas. A maioria da gente, porque é estupida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contrahiu o habito de se sentir a amar. Se assim não fosse, naão havia gente feliz no mundo. As creaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade d'essa illusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por elle a estima, ou a gratidão, que elle deixou.

Estas cousas fazem soffrer, mas o soffrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor, e todas as mais cousas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para commigo, mas comprehendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com magua, mas a maioria da gente - homens ou mulheres - escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio optimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.

Quanto a mim...

O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e não esquecerei nunca - nunca, creia - nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequeneina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh'as attribuisse.

Não sei o que quer que lhe devolva - cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memoria viva de uma passado morto, como todos os passados; como alguma cousa de commovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos annos é par do progresso na infelicidade e na desillusão.

Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inutil

Que isto de "outras affeiçõpes" e de "outros caminhos" é consigo, Ophelinha, e não commigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existencia a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais á obediência a Mestres que não permittem nem perdoam.

Não é necessario que comprehenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

Fernando

29/XI/1920

Cartas de Amor de Fernando Pessoa, Organização, posfácio e notas de David Mourão-Ferreira, Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz, Edições Ática, Lisboa 1978, pp. 131-133 Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz

Nenhum comentário: