sábado, 2 de maio de 2009

A Cidade e as Serras

Eça de Queirós



Numa dessas activas semanas, porém, a minha atenção subitamente se despegou deste interessante Jacinto. Hóspede do 202, conservava no 202 a minha mala e a minha roupa; e, acostado à bandeira do meu Príncipe, ainda ocasionalmente comia do seu caldeirão sumptuoso. Mas a minha alma, a minha embrutecida alma, e o meu corpo, o meu embrutecido corpo, habitavam então na Rua do Hélder, nº 16, quarto andar, porta à esquerda.

Descia eu uma tarde, numa leda paz de ideias e sensações, o Boulevard da Madalena, quando avistei, diante da Estação dos Ónibus, rondando no asfalto, num passo lento e felino, uma criatura seca, muito morena, quase tisnada, com dois fundos olhos taciturnos e tristes, e uma mata de cabelos amarelados, toda crespa e rebelde, sob o chapéu velho de plumas negras. Parei, como colhido por um repuxão nas entranhas. A criatura passou - no seu magro rondar de gata negra, sobre um beiral de telhado, ao luar de Janeiro. Dois poços fundos não luzem mais negro e taciturnamente do que luziam os seus olhos taciturnos e negros. Não recordo (Deus louvado!) como rocei o seu vestido de seda, lustroso e ensebado nas pregas; nem como lhe rosnei uma súplica por entre os dentes que rangiam; nem como subimos ambos, morosamente e mais silenciosos que condenados, para um gabinete do Café Durand, safado e morno. Diante do espelho, a criatura, com a lentidão de um rito triste, tirou o chapéu e a romeira salpicada de vidrilhos. A seda puída do corpete esgarçava nos cotovelos agudos. E os seus cabelos eram imensos, de uma dureza e espessura de juba brava, em dois tons amarelos, uns mais dourados, outros mais crestados, como a côdea de uma torta ao sair quente do forno.

Com um riso trémulo, agarrei os seus dedos compridos e frios:

- E o nomezinho, hem?

Ela séria, quase grave:

- Madame Colombe, 16, Rua do Hélder, quarto andar, porta à esquerda.

E eu (miserável Zé Fernandes!) também me senti muito sério, trespassado por uma emoção grave, como se nos envolvesse, naquela alcova do Café, a majestade de um Sacramento. À porta, empurrada levemente, o criado avançou a face nédia. Ordenei uma lagosta, pato com pimentões, e Borgonha. E foi somente ao findarmos o pato que me ergui, amarfanhando convulsivamente o guardanapo, e a tremer lhe beijei a boca, todo a tremer, num beijo profundo e terrível, em que deixei a alma, entre saliva e gosto de pimentão! Depois, numa tipóia aberta, sob um bafo mole de leste e de trovoada, subimos a Avenida dos Campos Elísios. Em frente à grade do 202 mumurei, para a deslumbrar com o meu luxo: - "Moro ali, todo o ano!..." E como ao mirar o Palacete, debruçada, ela roçara a mata fulva do pêlo crespo pela minha barba - berrei desesperadamente ao cocheiro que galopasse para a Rua do Hélder, nº 16, quarto andar, porta à esquerda!

Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com Amor, com todos os Amores que estão no Amor, o Amor divino, o Amor humano, o Amor bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um bode ama uma cabra. Era estúpida, era triste. Eu deliciosamente apagava a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com inefável gosto afundava a minha razão na densidade da sua estupidez. Durante sete furiosas semanas perdi a consciência da minha personalidade de Zé Fernandes - Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno rubro e rugidor; ora me parecia ser uma faminta fogueria onde flamejava, estalava e se consumia um molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão de uma alcova forrada de cretones sujos, de uma bata de lã cor de lilás com sutaches negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore de um lavatório, e de um corpos tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação de incessantemente e com arroubado deleite me despojar, arremessar para um regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos, o meu relógio, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões de punho de safira, e as cento e noventa e sete libras que eu trouxera de Guiães numa cinta de camurça. Do sólido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcaça errando através de um sonho, com as gâmbias moles e a baba a escorrer.

Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da Rua do Hélder, encontrei a porta fechada - e arrancado da ombreira aquele cartão de Madame Colombe que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua tabuleta... Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela era a porta do mundo que ante mim se fechara! Para além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara sozinho, naquele patamar do Não-ser, fora da porta que se fechara, único ser fora do mundo! Rolei pelos degraus, com o fragor e a incoerência de uma pedra, até ao cubículo da porteira e do seu homem que jogavam as cartas em ditosa pachorra, como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o Universo!

- Madame Colombe?

A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:

- Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra, com outra porca!

Para outra terra! com outra porca!... Vazio, negramente vazio de todo o pensar, de todo o sentir, de todo o querer - boiei aos tombos, como um tonel vazio, na corrente açodada do Boulevard, até que encalhei num banco da Praça da Madalena, onte tapei com as mãos, a que não sentia a febre, os olhos a que não sentia o pranto! Tarde, muito tarde, quando já se cerravam com estrondo as cortinas de ferro das lojas, surdiu, de entre todas estas confusas ruínas do meu ser, a eterna sobrevivente de todas as ruínas - ideia de jantar. Penetrei no Durand, com os passos entorpecidos de um ressuscitado. E, numa recordação que me escaldava a alma, encomendei a lagosta, o pato, o Borgonha! Mas ao alargar o colarinho, ensopado pelo ardor daquela tarde de Julho, entre a poeira da Madalena, pensei com desconforot: - "Santíssimio Nome de Deus! Que imensa sede me fez esta desgraça!..." De manso acenei ao moço: - "Antes do Borgonha, uma garrafa de champanhe, com muito gelo, e um grande copo!..." Creio que aquele champanhe se engarrafara no Céu onde corre perenemente a fresca fonte da Consolação, e que na garrafa bendita que me coube penetrara, antes de arrolhada, um jorro largo dessa fonte inefável. Jesus! que transcendente regalo, o daquele nobre copo, embaciado, nevado, a espumar, a picar, num brilho de ouro! E depois, garrafa de Borgonha! E depois, garrafa de conhaque! E depois Hortelã- Pimenta granitada em gelo! E depois, um desejo arquejante de espancar, com o meu rijo marmeleiro de Guiães, a porca que fugira com outra porca! Dentro da tipóia fechada, que me transportou num galope ao 202, não sufoquei este santo impulso, e com os meus punhos serranos atirei murros retumbantes contra as almofadas, onde "via", furiosamente "via" a mata imensa de pêlo amarelo, em que a minha alma uma tarde se perdera, e três meses se debatera, e para sempre se emporcalhara! Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu espancava tão desesperadamente a besta ingrata, que, aos berros do cocheiro, dois moços acudiram e me sustiveram, recebendo pelos ombros, sobre as nucas servis, os restos cansados da minha cólera.

Queirós, Eça de, As Cidades e as Serras, Introdução
por Carlos Reis, Biblioteca Ulisseia de Autores
Portugueses, Ulisseia, Lisboa, s., pp. 92-95

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