sábado, 2 de maio de 2009

Levantado do Chão

José Saramago



Há quem tenha o sono pesado, há quem o tenha leve, há quem ao adormecer se despegue do mundo, há quem não saiba estar senão deste lado e por isso sonha. Diremos que Joana Canastra é consoante. Possa ele dormir em seu sossego, é o caso de quando está doente, se as dores não doerem demasiado, e aí fica no jeito que lhe ficou do berço, diria quem de então a conheceu, a face sobre a mão aberta, moreníssima e cansada, no mais longo e profundo sono. Mas se tem cuidados, e os cuidados hora certa, quinze minutos antes dela abre os olhos bruscamente, como se obedecesse a um mecanismo interior de relojoaria e diz, Sigismundo, levanta-te. Fosse este relato caso contado por quem o viveu e logo se veria que já começaram as deturpações, involuntárias umas, premeditadas outras e obedecidas a regras, porque o que Joana Canastra realmente disse foi, Sismundo, levanta-se, e aqui se verifica a que ponto é pequena a margem para o erro quando ambos sabem do que se trata, a prova é que Sigismundo Canastro, a quem por sua vez não faltam dúvidas ortográficas, atira a manta para trás, salta da cama em ceroulas e atravessa a casa para ir abrir o postigo e espreitar para fora. É ainda escura noite, só um olho agudíssimo, que Sigismundo Canastro já não tem, ou uma experiência de milénios, que lhe sobra, permitiriam distinguir a imponderável mudança que há na banda da nascente do dia, talvez, entenda quem puder estes mistérios da natureza, o brilho maior das estrelas, quando o contrário é que havia de parecer certo. A noite está fria, nem admira, Novembro é bom mês para isso, mas o céu mostra-se descoberto e assim irá ficar, como também em Novembro acontece muito. Joana Canastra já se levantou, acende o lume, empurra a cafeteira tisnada para aquecer o café, é o nome que continua a ser dado a esta mistura de cevada ou chicória ou tremoço queimado e moído, nem a gente sabe o que bebe, e vai buscar à arca meio pão e três sardinhas fritas, não ficou muito mais na arca, se ficou alguma coisa, põe tudo em cima da mesa e diz, Tens o café quente, vem comer. Hão-de parecer estas palavras triviais, pobre falar de gente pouco imaginosa que nunca aprendeu a engrandecer os pequenos actos da existência com palavras superlativas, veja-se se há alguma comparação entre a despedida de Julieta e Romeu no balcão do quarto onde a donzela se fez dona e as palavras ditas pelo alemão de olhos azuis à não menos donzela, mas plebeia, que sobre os fetos a dona foi forçada. E o que ela lhe disse. Fossem estes diálogos mantidos na elevação das suas circunstâncias e saberíamos que, embora não primeira, esta saída de Sigismundo Canastro tem que se lhe diga e por isso irá dizer-se. Comeu Sigismundo Canastro meia sardinha e um naco de pão, sem prato nem garfo, cortando pedacinhos dela e bocadinhos dele com a ponta meticulosa da cuchila, assentou sobre esta papa já no estômago o conforto quente do café aleijado, há quem jure a pés juntos que a existência de Deus se prova pela existência e concordância do café e da sardinha frita, mas isto são questões de teologia, mas de viagens matinais, pôs o chapéu na cabeça, atacou as botas, enfiou um pelico surrado e disse, Até logo mulher, se perguntarem por mim, diz que não sabes aonde fui. Nem valia a pena fazer a recomendação, é sempre a mesma, e aliás nem Joana Canastra poderia dizer muito, pois sabendo ao que vai o marido, e isso não diria nem que a matassem, não sabe aonde vai ele, e portanto nem que a matassem poderia dizer. Sigismundo Canastro estará todo o dia por fora, voltará noite fechada, mais por razões de caminho e distância do que por real tempo ocupado, embora nunca se saiba. A mulher diz, Até logo, Sismundo, ela insiste no nome assim, não devemos rir, nem sequer sorrir, que é um nome, e depois de ele ter saído pela cancela do quintal foi sentar-se num cortiço ao pé do lume e ali ficou até o sol nascer, de mãos juntas, mas não consta que rezasse.

Faustina Mau-Tempo, no outro extremo de Monte Lavre, não está habituada, é a primeira vez. Por isso, embora saiba que o marido só deverá sair de casa já com o sol nascido, não conseguiu dormir em toda a noite, espantada de que sendo João Mau-Tempo por costume tão inquieto, ali esteja dormindo sossegadamente, como quem nada teme embora alguma coisa deva. São compensações do corpo para a alma alterada. Quando João Mau-Tempo acorda, dia claro mas ainda não sol fora, e lembrança do que vai fazer entra-lhe subitamente pelos olhos dentro, tanto assim que os fecha logo, e não por medo que sente uma pancada no estômago, mas sim por uma espécie de respeito de igreja, terra campa ou nascimento de criança. Está sozinho no quarto, ouve os ruídos da casa e os do exterior, um cantar friorento de pássaro esquecido, as vozes das filhas e o estalar da lenha a arder. Levanta-se, já foi dito que é um homem pequeno e seco, tem uns olhos azuis luminosos e antigos, e nesta idade de quarenta e dois anos em que está, rareiam-lhe os cabelos e os que tem embranquecem, mas antes de se pôr de pé tem de fazer uma pausa, acomodar o corpo à pontada que a posição deitada ressuscita todas as noites, e não devia ser assim, devia ser o contrário, se o corpo descansou. Vestiu-se e entrou na cozinha, que é a casa de fora, chega-se ao lume como se ainda quisesse conservar o calor da cama, nem parece que está habituado a grandes frios, diz, Bons dias, e as filhas vão beijar-lhe a mão, é uma alegria ver a família reunida, todos desempregados, em alguma coisa se hão-de entreter durante todo o dia por fora, voltará noite fechada, mais por razões de caminho e distância do que por real tempo ocupado, embora nunca se saiba. A mulher diz, Até logo, Sismundo, ela insiste no nome assim, não devemos rir, nem sequer sorrir, que é um nome, e depois de ele ter saído pela cancela do quintal foi sentar-se num cortiço ao pé do lume e ali ficou até o sol nascer, de mãos juntas, mas não consta que rezasse.

Faustina Mau-Tempo, no outro extremo de Monte Lavre, não está habituada, é a primeira vez. Por isso, embora saiba que o marido só deverá sair de casa já com o sol nascido, não conseguiu dormir em toda a noite, espantada de que sendo João Mau-Tempo por costume tão inquieto, ali esteja dormindo sossegadamente, como quem nada teme embora alguma coisa deva. São compensações do corpo para a alma alterada. Quando João Mau-Tempo acorda, dia claro mas ainda não sol fora, e lembrança do que vai fazer entra-lhe subitamente pelos olhos dentro, tanto assim que os fecha logo, e não por medo que sente uma pancada no estômago, mas sim por uma espécie de respeito de igreja, terra campa ou nascimento de criança. Está sozinho no quarto, ouve os ruídos da casa e os do exterior, um cantar friorento de pássaro esquecido, as vozes das filhas e o estalar da lenha a arder. Levanta-se, já foi dito que é um homem pequeno e seco, tem uns olhos azuis luminosos e antigos, e nesta idade de quarenta e dois anos em que está, rareiam-lhe os cabelos e os que tem embranquecem, mas antes de se pôr de pé tem de fazer uma pausa, acomodar o corpo à pontada que a posição deitada ressuscita todas as noites, e não devia ser assim, devia ser o contrário, se o corpo descansou. Vestiu-se e entrou na cozinha, que é a casa de fora, chega-se ao lume como se ainda quisesse conservar o calor da cama, nem parece que está habituado a grandes frios, diz, Bons dias, e as filhas vão beijar-lhe a mão, é uma alegria ver a família reunida, todos desempregados, em alguma coisa se hão-de entreter durante todo o dia, passajar umas roupas, Gracinda tem o enxoval, vai devagarinho, conforme se pode, o casamento é só para o ano que vem, à tarde irá com a irmã lavar roupa na ribeira, uma carga de roupa que foram buscar ao prédio, sempre são vinte escudos. Faustina, que está a ensurdecer, não ouviu o marido, mas sentiu-o, foi talvez a vibração sísmica da terra pisada ou a deslocação de ar que só o corpo dele pode causar, cada qual a sua, é verdade, mas estes vivem juntos há vinte anos, só um cego se enganaria, talvez, e ela dos olhos não tem razão de queixa, o ouvido é que vai faltando, embora lhe pareça, e essa é a sua desculpa de todos os dias, que as pessoas têm agora uma embrulhada maneira de falar, como se fizessem de propósito. Parecem coisas de velhos, mas são apenas coisas de gente cansada antes da idade. João Mau-Tempo vai alimentado para a jornada, bebeu o café, tão ruim como o de Sigismundo Canastro, comeu o pão de mistura, que parte de trigo há nele, e meteu no bucho um ovo cru, buraco num lado, buraco no outro, é um dos seus grandes prazeres na vida, assim pudesse. Já lhe passou o aperto do estômago, e agora que o sol vai saindo deu- lhe uma grande pressa, diz, Até logo, se alguém perguntar por mim, não sabem aonde fui, e não são palavras combinadas, é o natural de quem tem o falar ao pé da boca e não se vai pôr a rebuscar outras razões. Nem Gracinda nem Amélia sabem aonde vai o pai, e perguntam depois de ele sair, mas a mãe é surda, como já estamos informados, e finge que não ouviu. Não se lhe pode levar a mal, que as moças são novas e levantadas, só por causa da pouca idade, não por estouvamento, assacação que ofenderia pelo menos Gracinda, sabedora das aventuras de Manuel Espada, primeiro grevista conhecido de Monte Lavre, mais os companheiros, quando ainda era rapazelho.

O encontro é na Terra Fria. São nomes dados a sítios, certamente por algum motivo que se entenderia, mas este de Terra Fria em latifúndio tão quente de Verão e de Inverno tão frio por igual, só revertendo às origens e essas perderam-se, como é costume dizerem os adormecidos, na noite dos tempos. Mas antes de lá chegarem se juntarão Sigismundo Canastro e João Mau-Tempo, no cabeço da Atalaia, não no alto, claro está, era o que faltava porem-se estes homens à vista de quem passasse, embora o latifúndio não seja, neste lugar particular e nesta ocasião, concorrido como a praça do Giraldo, se percebem o que queremos dizer. Encontrar-se-ão no pé do cabeço, onde há um arvoredo basto, Sigismundo Canastro conhece bem o sítio, João Mau-Tempo não tanto, mas um homem mesmo sem boca vai a Roma. E dali para a Terra Fria seguirão juntos, por caminhos que Deus nunca andou e o Diabo só obrigado.

Não está ninguém na varanda circular do céu, aquela que por cima do horizonte é o costumado palanque dos anjos quando na arena do latifúndio há grandes movimentações. É esse o grande e fatal erro dos exércitos celestes, julgarem tudo pela bitola da cruzada. Desprezam as pequenas patrulhas, os destacamentos aventureiros, os voluntários para esta missão, os minúsculos pontinhos que são dois homens aqui, um além, outro mais adiante, outro ainda longe e atrasado, todos convergindo, mesmo quando parecem desviar caminho, para um lugar que no céu não tem nome, mas cá em baixo se chama Terra Fria. Talvez se pense no remansoso empíreo que aqueles humanos vão banalmente para o trabalho, não obstante a falta dele, como até no céu se devia saber por ocasionais recados do padre Agamedes, e é verdade que de trabalho se trata. É uma diferente seara, responsabilidade tão grande que João Mau-Tempo perguntará a Sigismundo Canastro quando se encontrar com ele e depois de dados os primeiros passos, ou não logo, quando tiver conseguido vencer a timidez, Achas que me vão aceitar, e Sigismundo Canastro responderá, com a segurança de mais velho nisto e na idade, Já foste aceitado, não tenhas medo, nem virias hoje comigo se houvesse algumas dúvidas. Há quem venha de bicicleta. Ficará escondida no mato, em local de alguma maneira facilmente identificável, não vá perder-se depois o norte. Desta vez não haverá que recear o problema da chapa de matrícula, tudo se passa dentro do concelho, só por embirração ou súbita desconfiança a guarda mandaria parar, Aonde é que vai, donde é que vem, mostre cá a licença, e isso não seria bom, este homem chama-se por acaso Silva, mas também se chama Manuel Dias da Costa, é um supor, Silva para aqueles com quem vi estar na Terra Fria, para a guarda Manuel Dias da Costa, para o registo civil um nome diferente e também para o padre Agamedes que o baptizou muito longe destes sítios. Há quem defenda que sem o nome que temos não saberíamos quem somos, é um dito que parece perspicaz e filosófico, mas este Silva ou Manuel Dias da Costa que carrega nos pedais por um caminho carreteiro enlameado, já felizmente deixou a estrada por onde a guarda de improviso passa ou está dias inteiros sem aparecer, mas nunca se sabe, quem adivinha vai para a casinha, este ciclista avança tão em paz na sua alma, que bem se vê como lhe não tocam estas subtis questões de identidade, tanto de si próprio como de papéis. Reparando melhor, porém, não é tanto assim, mais seguro ele está de quem é, do que dos documentos que o nomeiam. E como é um homem dado a pensamentos, pensa como é singular perceber menos a guarda aquilo que vê, o homem e a sua bicicleta, do que um papel escrito e carimbado, já cansado de ser aberto e fechado, Pode seguir, mas enquanto assenta o pé no pedal e dá o impulso, pensa que tão cedo não convirá que por esta estrada passe, por isso veio pela primeira vez para estes lados e teve sorte, que ninguém o mandou parar. Há quem viaje de comboio, saia em São Pedro Torcato, na linha de Setil, ou em Vendas Novas, ou mesmo em Montemor, mais além se o encontro for na Terra da Torre, nestas estações daqui se for na Terra Fria. Bem está neste caso para quem vier de São Geraldo, é o salto duma pulga, mas se neste dia de hoje alguém saiu de São Geraldo para iguais cometimentos, seguiu para mais longe, talvez não acaso, regra será e decerto com suas fundamentações. A esta hora, meia manhã andada, já não se vê a bicicleta, os comboios andam por muito longe, lá vai ele a assobiar, e sobre a Terra Fria paira um milhano caçador, é bonito de ver, mas muito mais bonito é estar a vê-lo e de repente ouvi-lo gritar, aquele pio longo que ninguém pode exprimir por palavras, mas quando o ouvimos logo queremos dizer como foi, e não saímos disto, bichos de piar é o que menos falta, entre pintos de toda a espécie é a voz comum, mas este grito é diferente, tão de natureza brava, faz assim um arrepio, nem me admiraria que de tanto o ouvir acabasse por nos nascerem asas, têm-se visto coisas mais extraordinárias. Pairando alto, o milhano deixa pender um pouco a cabeça, é um simples jeito, pois a vista não precisaria de tão mínima aproximação, nós é que temos estas mazelas de miopia, astigmatismo, palavras que, a propósito se diga, devemos acautelar neste sítio do latifúndio, podem os anjos confundir com estigmatismo, palavras que, a propósito se diga, devemos acautelar neste sítio do latifúndio, podem os anjos confundir com estigmatismo, vir à varanda à procura de Francisco de Assis e dar com um simples milhano aos gritos e cinco homens que se aproximam, uns perto, outros mais longe, da Terra Fria. Quem os vê a todos lá de cima, é o milhano, mas esse não é a ave para ver e ir contar.

Os primeiros a chegar foram Sigismundo Canastro e João Mau-Tempo, esmeraram-se nisso por um deles ser novel. Enquanto esperavam, sentados ao sol para não arrefecerem depressa de mais, Sigismundo Canastro disse, Se tirares o chapéu, põe-no de copa para cima, Porquê, perguntou João Mau-Tempo, e o Sigismundo Canastro respondeu, Por causa do nome, nós não devemos saber os nomes uns dos outros, Mas eu sei o teu, Pois sabes, mas não dirás, os camaradas farão o mesmo, isto é para o caso de vir a haver prisões, não sabendo os nomes estamos a salvo. Ainda disseram outras coisas, falar solto, mas João Mau-Tempo ficou a pensar nesta, tantos cuidados, e quando chegou o da bicicleta percebeu que deste é que nunca saberia o nome verdadeiro, talvez por causa do respeito mostrado por Sigismundo Canastro, embora o tratasse por tu, se justamente tutear não era o respeito maior. Este é o novo camarada, disse Sigismundo Canastro, e o da bicicleta estendeu a mão, não era a mão grossa do trabalhador do campo, mas forte sim, e sólida no apertar, Camarada, a palavra não é nova, são isso mesmo os companheiros no trabalho, mas é como dizer tu, é igual e logo tão diferente que os joelhos dobram e a garganta se contrai, caso estranho em homem que passou dos quarenta e viu muita coisa de mundo e vida. Estão os três nisto, fazendo tempo enquanto os outros não chegam, Esperamos meia hora, se não vierem começamos nós, às tantas João Mau-Tempo tira o chapéu e antes de o pôr no chão, de copa para cima como Sigismundo Canastro recomendara, olhou para dentro, ao disfarce, e viu escrito João Mautempo na fita, em letras de chapeleiro, era esse o costume provincial daquelas épocas quando já nas cidades se cultivava o anonimato. O da bicicleta, isto sabemos nós, que João Mau-Tempo julgará que também ele veio todo o caminho a pé, o da bicicleta usa boina, não é nada certo que nela tenha o nome, e se tivesse, qual seria, boinas compram-se nas feiras, em algibebes que não têm prosápias de comércio letrado nem instrumentos de pirogravação ou douração e a quem tanto dá que o freguês perca o gorro como o ache.

Saramago, José, Levantado do Chão, Círculo de Leitores, Lisboa 1988, pp. 168-174

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