Popper, Kuhn e Lakatos – Breve percurso
(Parte I)(*)
Talvez uma das “coisas” mais absurdas e impactantes
que podemos ouvir, ou ler, durante um curso científico, é saber que a
ciência é composta, ou deva ser, de formas metafísicas que “balizam”,
orientam, nossas pesquisas e a nossa forma de pesquisar.
Quando dizemos que há algo de metafísico, ou
ontológico, imaginamos que este tipo de explicação está longe da
ciência, ou que não precisamos mais deste tipo de pensar.
Imagino que todos nós já tenhamos uma base do que
possa ser a metafísica ou a ontologia (quando vista como parte da
metafísica). Suponho que já sabemos da origem da palavra metafísica e do
seu atual contexto, bem como sua crítica levada a cabo pelo famoso
Círculo de Viena.
Digo que tal tipo de afirmação é impactante, pois
imaginamos que a ciência possui um trabalho baseado exclusivamente na
observação, que por seu turno orienta todo o tipo de teorização a fim de
explicar o mundo e as coisas que aqui temos. Nesta mesma visão, é bem
possível partilhar da concepção pejorativa da metafísica como algo que
está fora da realidade, que não se preocupa com a mesma e que jamais se
utiliza de qualquer tipo de observação, mesmo que não criteriosa.
Talvez, ainda alguém com este posicionamento, imagine
que sim a metafísica possua até mesmo algum grau de observação,
entretanto a Ciência, (com C maiúsculo), seja portadora de um grau maior
de critério para observação e que a metafísica em si não possui, e nem
mesmo é orientada a verificar suas afirmações. Neste último tipo de
pensamento, apesar de ainda encarar a Ciência como algo único (e por
isso do C maiúsculo) e ainda ver fabulosamente como esta ciência poderia
ser tão sofisticada em frente a outras formas de explicarmos o que se
passa, já há aqui o germe da noção que esta mesma ciência possui algo de
orientador, mesmo que seja o simples critério.
Entretanto, uma pergunta que podemos fazer, que é
filosófica, porém não é restrita a filósofos (pode ser feita
conscientemente por cientistas e leigos) é: quais são os critérios das
escolhas destes critérios?
E, a partir deste questionamento, podemos seguir fazendo outras perguntas: É possível que os critérios sejam arbitrários
ou que sejam logicamente dispostos? Existe alguma relação no
estabelecimento destes critérios com o fato de adquirirmos conhecimento,
ou de supor que adquirimos com um aparente funcionamento de teorias?
Todas estas questões permeiam-nos, de uma forma ou de
outra, quando nos posicionamos criticamente em relação de como o
processo científico se dá.
Para este seminário, farei a exposição de um filósofo
da ciência chamado Imre Lakatos, um filósofo húngaro que debruçou sobre
questionamentos similares a respeito do funcionamento da ciência.
Para falar de sua filosofia, primeiro acho justo ter
de falar a respeito de dois outros pensadores da ciência, Popper e Kuhn,
para depois, por fim, falar a respeito de Lakatos, visto que este
último traz, de certo modo, uma síntese dialética entre ambos.
Popper, um dos filósofos da ciência mais populares,
foi contra uma corrente de filósofos da ciência, em geral do círculo de
Viena, que propunham que a ciência deveria possuir, a grosso modo, a
verificabilidade como critério.
Para os componentes do círculo de Viena, a
verificabilidade era um critério para a demarcação de qual teoria pode
ser considerada científica. Repudiavam o conteúdo metafísico, afirmando
que este não pode ser verificado e não falaria do mundo.
Popper, em suma, criticou o indutivismo como se este
fosse o funcionamento da ciência e contrariou o verificacionismo
postulando uma proposta no qual teorias científicas podem ser demarcadas
com o falseacionismo.
O indutivismo propõe que uma série de observações,
o1, o2, o3 … o(n) irão permitir a retirada de uma teoria científica e de
caráter geral, operando de níveis mais individuais para um nível geral.
O Falseacionismo, a grosso modo age não na
verificação de uma teoria, mas sim na possibilidade desta teoria ser
testada. E insere a possibilidade de um preceito lógico: a implicação em
modus tollens.
Numa implicação no modus tollens, se digo
“Se A então B; mas não B, então não A” é o formato lógico válido. O
falseacionismo é um tipo de aplicação deste conceito lógico no âmbito da
demarcação científica.
Se uma teoria pode ser testada e é falseada, sabemos que de fato ela é uma teoria científica. Embora tenha sido falseada.
Caso uma teoria seja proposta e ela não for falseada, embora possa ser colocada em prova, é corroborada.
Notem que o termo de corroboração não possui o mesmo equivalente semântico, ou lógico, de comprovado.
O corroborado tem valor semântico diferente de comprovado
justamente porque não obedecem ao mesmo preceito lógico. Não posso
dizer que “se chover, a rua está molhada, poxa, ela está molhada, então
chove”. Isto seria falacioso, e notoriamente a rua poderia estar molhada
por diversos outros motivos, que não seja este.
Deste modo, falsear uma teoria com uma prova, nega que ela seja verdadeira, porém é logicamente aceitável.
Neste sentido uma teoria científica deve ser
testável, ou seja deve ser possível a pôr-se numa prova, no qual ela
pode ser falseada completamente.
Um grande indício de uma teoria que não seja
científica, portanto esteja fora destes moldes demarcados, seria uma
teoria que nunca pode ser falseada. E sempre que posta a uma prova, ela é
modificada. Estas modificações são chamadas de ad hoc. A inclusão de alterações ad hoc
sistematicamente é um indício claro de uma teoria que não estaria
funcionando e que portanto estaria deixando de ser científica.
Entretanto, este tipo de falseacionismo, no qual uma
prova pode falsear toda uma teoria, beira um tipo ingênuo de
falseacionismo. Metodologicamente é aceitável que uma teoria possa
possuir hipóteses auxiliares em sua estrutura, que estariam erradas numa
prova, e por isso ela não seria suficiente para falsear toda a teoria. É
possível que a alteração, mesmo que considerada ad hoc nesta
hipótese, possa apontar uma teoria mais verossimilhante à realidade.
Deste modo, há um aperfeiçoamento metodológico nesta última concepção.
Ademais, também é plausível que existam teorias concorrentes (ao invés
de teorias solitárias que sucedem umas às outras), que submetidas a
algum tipo de prova, que neste caso chamaríamos de “crucial”, demonstrem
que a teoria A, está falseada e a teoria B corroborada, mesmo que uma
alteração ad hoc seja possível em A. Se formos econômicos iremos preferir B1.
Neste sentido, posições metafísicas não são testáveis
e por isso não são científicas. Entretanto isto não significa que
estejamos desprovidos de algum tipo de metafísica. A rejeição a um
indutivismo científico sugere que metodologicamente existe algum
conteúdo metafísico operando na criação de teorias, que para serem
científicas, deverão ser testáveis.
Não pretendo me delongar sobre Popper, apesar de considerar que o que foi dito foi necessário para entendermos melhor Lakatos.
Outro pensador importante para a compreensão no
maquinário de Lakatos é Thomas Kuhn, que defende um modo de pensar, no
qual as ciências obedecem a modelos de teorias e modos de pensar.
Estes modelos são chamados por Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas, de paradigmas.
Tais paradigmas são tanto formas de teorizar, pensar, geradas pelo sucesso de teorias ao longo de um certo período.
Portanto olhar para a teoria de Darwin é olhar para
uma teoria que é paradigmática e centra um modelo de como se deve
teorizar dentro da ciência da biologia evolutiva.
Assim, todo estudante de uma área científica é
iniciado em algum tipo de paradigma. Esta forma de abordar, claramente
sugere um caráter doutrinário na ciência.
Todo paradigma, seria então, causado, ou fundamentado, no sucesso de certas explicações científicas.
Um exemplo disto é a física Newtoniana. Ela possuiu certos acertos e sucessos explicativos, fornecendo um modelo, ou seja, um paradigma de como o cientista físico deverá trabalhar. O cientista, nesta fase da ciência (chamada normal) trabalha em jogar o jogo ditado pelo paradigma.
E todo trabalho do cientista nesta fase é de caráter cumulativo.
Podemos notar aqui um caráter psicológico na ciência, em torno do termo paradigma.
No entanto, é possível que em certos momentos esta
ciência, que possui um paradigma vigente e funcionando, comece a
enfrentar problemas explicativos. Tais problemas seriam anomalias, que
aos poucos afetam não somente teorias isoladas, mas todo um paradigma
existente.
Retomando o exemplo da física newtoniana, notamos, no
final do século XIX e início do século XX, que determinadas anomalias
foram capazes de pôr em xeque a supremacia da física newtoniana como
modelo explicativo de como funciona os fundamentos de nosso universo do
macrocosmo em escalas astronômicas e no microcosmos (em escalas
subatômicas).
Assim, existe uma fase, de uma ciência
extraordinária, no qual o paradigma anterior é deixado de lado, dá-se
uma revolução científica, em que todo tipo de critério, ou orientação
metafísica passa-se por questionamentos que reduzem a confiabilidade do
paradigma até o ponto em que surge uma reorientação paradigmática, que
aos poucos culminam na fixação de um novo paradigma que ditará novamente
como a ciência normal deverá proceder.
Durante a explicação sobre como se dá o processo
científico no pesamento de Lakatos, possivelmente recordaremos de
asserções feitas por Popper e por Kuhn, descrevendo o porquê deste
pensamento poder ser considerado como uma síntese entre os dois tipos de
visões: popperiana e Kuhniana (como estabeleci no início deste
seminário). Tanto é, que esta filosofia da ciência é autoproclamada como
falseacionismo metodológico sofisticado.
(CONTINUA NA PARTE II)
Arnaldo VasconcellosPopper, Kuhn e Lakatos – Breve percurso (Parte II)
Popper, Kuhn e Lakatos – Breve percurso (Parte II) (*)
Para Lakatos a história da ciência não se dá por
teorias isoladas que se sucedem em algum tipo de concorrência, ou de
superação. Para este, as teorias estão estabelecidas em séries, do qual
podemos chamar de séries teóricas.
Estas séries teóricas participam de programas de
pesquisa científicas (PPC). Os programas de pesquisa concorrem entre si e
não são teorias isoladas. São séries teóricas, de teorias que se
sucedem em torno de um funcionamento comum (o PPC). Desta forma um
programa é que é demarcado como científico ou não.
Um programa de pesquisa científica (PPC) portanto tem
em si uma orientação de como o cientista deverá trabalhar, uma série de
teorias e hipóteses que são propostas e são substituídas conforme há o
trabalho científico nos moldes propostos naquele programa.
Um PPC portanto, tem um caráter amplo e contém
teorias dispostas em série temporal. Deste modo, uma teoria pode não ser
falseada imediatamente ao ser posta numa prova. É possível também que,
ao encontrar uma anomalia, existam casos que vão desde a reformulação de
uma hipótese auxiliar, até mesmo ao fato de ignorar completamente a
anomalia.
Apesar disto, na visão de Lakatos, os PPCs concorrem
entre si. Deste modo é possível haver dois programas que estão
competindo na explicação de uma mesma coisa. As teorias são, portanto,
produtos de PPCs em atividade. Claramente a noção de um PPC lembra a
visão paradigmática de Kuhn, além de termos as noções de falseacionismo
inseridas neste sistema. Entretanto a forma metodológica como é posta,
vislumbra uma complexidade maior de como se dá a visão de entes norteadores e como podem existir normas metodológicas que se façam operar tais entes norteadores.
Torna-se necessário distinguir as partes de um PPC.
O PPC possui em sua estrutura um componente chamado de núcleo duro
que é justamente um tipo de asserção metafísico (ao menos
popperianamente) que não deve ser modificado durante a atividade do PPC.
Este núcleo orienta a geração e os testes de teorias dentro de um PPC.
São concepções de cunho ontológico, são como imagens de como a natureza e
a ciência são: desta forma não são componente que devam ser alterados
com facilidade, aliás sua alteração é evitada e o núcleo duro não é questionado. E isto se dá por uma decisão metodológica, mesmo que seja de forma tácita.
Em torno deste núcleo duro, existe um cinturão protetor, que tem a tarefa de envolver o núcleo com hipóteses auxiliares e teorias que compõem um intermédio modificável de acordo com o desenvolver teórico nas PPCs.
A forma como este cinturão de hipóteses é formulado ou alterado é devido a outros dois componente num PPC: a heurística negativa e a heurística positiva.
A palavra heurística se remete ao grego
Eureka, descoberta, e representa algum tipo de forma estabelecida para
“descobertas”. Seu contexto original refere-se a uma relação
metodológica para a obtenção de uma episteme, ou seja, um
conhecimento. Portanto, trazendo este vocabulário para Lakatos, podemos
dizer que as duas heurísticas descritas como partes de um PPC são formas
metodológicas de como criar e alterar o cinturão protetor.
A heurística negativa protege o núcleo duro, de forma
a criar hipóteses auxiliares para o cinturão protetor, conforme temos
presentes anomalias, que num falseacionismo de outra ordem deveria ser
suficiente para falsear uma determinada teoria. Deste modo, a heurística
negativa contorna a existência das anomalias, para que estas não interfiram ao núcleo duro. Assim, esta heurística impossibilita a atuação de um modus tollens direcionado ao núcleo duro. Portanto, é negativa pois fundamenta o que deverá ser evitado pelo cientista.
Já a heurística positiva modifica este cinturão de
hipóteses para que as teorias se tornem mais fiéis ao que a realidade
corresponde. Desta forma, as teorias resultantes terão um conteúdo cada
vez mais verossímil à realidade, fazendo com que possíveis anomalias se
diluam no PPC, devido o caráter de aproximação destas teorias para com a
realidade. Assim, é positiva, pois sugere o que o cientista poderá
utilizar no trabalho em uma PPC.
As teorias, dentro das PPCs são sucedidas conforme o
grau de existir conteúdo empírico que possa corroborar tal teoria e
predizer. Isto denota, de alguma forma, um poder heurístico atuando.
Desta forma podemos imaginar que neste tipo de
filosofia da ciência há um constante crescimento de conhecimento nas
ciências, visto que existem metodologias para que isto aconteça durante
as séries teóricas e, também, na substituição de programas.
Além destes pormenores de um PPC, também pode-se avaliar o progresso de tais PPCs.
Um PPC pode ser tomado como progressivo se este
oferecer um refinamento cada vez maior de teorias em torno da realidade,
promovendo previsões e teorias corroboradas. Já um PPC pode ser
degenerescente caso não ofereça este refinamento. Um programa
degenerescente abre possibilidade para a sua substituição. Entretanto
esta avaliação não irá dizer categoricamente que um programa deva ser
deixado de lado, pois programas recentes em aparente degenerescência
podem tornar-se progressivos ao entrarem num estado mais maduro de
desenvolvimento. Portanto, é possível que programas em degenerescência
ainda sejam adotados, ou que estes venham a ter uma virada abrupta de
degenerescência para progressividade.
Vale ressaltar também que um programa aparentemente
estagnado, sem nenhuma progressividade aparente, pode ser tomada como
progressivo ou degenerativo em relação a um programa rival.
Arnaldo Vasconcellos http://arnaldo.networkcore.eti.br
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